Platão foi acusado muitas vezes de ser o idealizador de um sistema aristocrático e autoritário de administração da cidade. Entendendo a cidade justa como um organismo vivo, Platão esforçou-se para descrever a sua gênese e não a sua história, tomando como referência um modelo dela elaborado como uma construção geométrica.
Tentou-se ver aqui uma
utopia, em particular na imagem que nos é dada da classe dos guardiões, em que
não se leva em conta a diferença dos sexos, as crianças pertencem ao Estado, os
casamentos são de curta duração e organizados para o eugenismo, os guardiões
não tocam nas riquezas da cidade etc. Esse modelo de tipo autoritário, observa
Abel Jeannière, a partir do qual se falou do ‘comunismo’ de Platão, foi muitas
vezes descrito e criticado. No entanto, mais do que uma utopia ou sonho de uma
cidade perfeita, trata-se, na concepção platônica, de um modelo lógico - construído da mesma forma que as teorias matemáticas - que Platão sabe perfeitamente
inaplicável, mas que pode servir de referência na crítica e no estabelecimento
de regimes reais de administração da cidade.
Observemos aqui que
Platão não trata da administração particularizada de um certo domínio da
sociedade exemplificado numa organização privada, numa empresa, mas da
sociedade entendida em sua natureza específica como o conjunto de todas as
relações que envolvem a vida do homem dentro da comunidade a qual ele pertence.
Para a análise desta realidade serve-se de um modelo lógico implacável que,
embora aplicado ao todo, serve também como parâmetro à construção de modelos de
análise e pontos de referência construtivos relativos a setores particulares da
sociedade.
Mediante o modelo, o “paradigma
no céu”, Platão nos faz ver que todo problema político, e logo filosófico,
radica-se na incapacidade demonstrada pelos homens de organizar uma cidade viva
tão perfeita quanto o cosmo construído pelo demiurgo.
A referência a um modelo
lógico apresenta muitas vantagens e certamente deveria inspirar os pensadores
políticos daí em diante. A mais importante, segundo Abel Jeannière, é,
certamente, que tal modelo permite orientar melhor a educação para a justiça, na alma
e na cidade. Mas não apenas isso: torna possível acima de tudo a elaboração de
um paradigma que serve de referência à construção de uma forma real de
organização que pode ser medida em sua adequação ao modelo teórico
matematicamente elaborado. A exatidão do modelo matemático serve de referência
à elaboração efetiva da ordem, realçando ao mesmo tempo suas deficiências e
auxiliando o guardião na elaboração de diagnósticos visando a saná-la. E aqui
tocamos na segunda vantagem do procedimento platônico: a referência ao modelo ideal
permite julgar concretamente as organizações e regimes já existentes.
O julgamento, no entanto,
dentro da perspectiva do pensamento clássico, contextualizado sempre em
referência a polis, deve conduzir à
clareza necessária à defesa e construção prática de um organismo real que possa
servir de meio à consecução da vida feliz, ou da justiça, que exige felicidade
para todos.
A solução platônica instaura, portanto, um tipo de concepção orgânica do social em conformidade com
a qual cada indivíduo tem a sua parcela de doação e realização dialeticamente referida ao todo, em função sempre
da saúde do todo.
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