sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

Détour de Piva

Para Luis e Nath

Na hora cósmica do búfalo a palavra de Roberto Piva não liberta nem consola, afunda-se no manancial do desespero que, por ser exatamente desespero, nada pretende, senão ecoar o som de sua própria fúria impotente, como se nela e através dela pisasse o solo do impossível e secasse a lágrima do peixe.
 O Século XX passou como um sonho no qual o sonhador sonhou que sonhava. O despertar prometia uma nova razão para viver, mas o fato se impôs novamente com sua necessidade cega, suas urgências fabricadas, suas formas customizadas, seus acordos e suas trapaças; com a vigência de suas normas, seus parâmetros acríticos e suas forças corporativas, suas cidades embalsamadas, os nós de suas forcas apertando as consciências iludidas, ludibriando a inocência dos ingênuos em tempos que cuidam de manter os fluxos do capital correndo nas veias desgastadas de um mundo sujeito para sempre às forças mercantis da destruição, ao mal que se perpetua invadindo as casas, as casernas e as universidades, ampliando a guerra e condenando o corpo, essa sombra dilacerada de si mesma, a repetir a mímica do vencedor, vendendo-se no mercado do passado, sem nenhum futuro. 
Quem seria capaz de nos condenar se tentarmos a fuga? Se flertarmos com o desespero? Se usarmos nossa última força na construção de uma derradeira astúcia? Se nos escondermos detrás de um muro construído com o material da derrota em nossa Champot imaginária? O que esperar do século XXI, senão a confirmação da profecia? 

segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS DA FILOSOFIA ARISTOTÉLICA


A filosofia de Aristóteles se caracterizava, antes de tudo, pelo seu realismo, pela sua observação fiel da natureza, pela sua objetividade científica, pelo seu rigor metodológico e pela unidade harmônica do seu sistema que constitui uma síntese orgânica e maravilhosa. Vejamos os aspectos fundamentais da filosofia aristotélica:

a) Para Aristóteles o indivíduo é real e possui existência efetiva. É uma substância como a matéria e a forma. No entanto, há que se distinguir entre os sentidos da substância, determinando qual dentre eles é o mais próprio e o mais impróprio.
Conforme determinou G. Reale, a substância é, num sentido impróprio, matéria; num segundo sentido, mais próprio, é o sínolo; e, num terceiro sentido e por excelência, é a forma: ser é, pois, a matéria; ser, em grau mais elevado, é o sínolo; e ser é, no sentido mais forte, a forma. Assim compreende-se por que Aristóteles chamou a forma até mesmo de “causa primeira do ser” [ Metafísica, Z 17, 1041 b 28], justamente enquanto informa a matéria e funda o sínolo. [Cf.: Reale, G. História da filosofia antiga, vol. II, pg. 358.]

b) Causa é todo princípio que influi sobre a existência de um ser. Aquilo que estrutura e que condiciona a sua existência. Há quatro gêneros de causa: a material representa a matéria de que a coisa é feita; a formal constitui aquilo que, acrescentado à matéria, a determina ser esta ou aquela coisa; a eficiente representa aquele por quem ou aquilo por intermédio de que a coisa é feita; a final constitui aquilo para que ou em vista do que a coisa é feita.

c) Os seres mudam em virtude do ato e da potência. Ato é perfeição, potência é capacidade de perfeição. Toda mudança é uma passagem da potência ao ato. Esta passagem chama-se movimento, no sentido ontológico. Todos os seres são compostos de potência e ato, exceto Deus que é Ato Puro.

d) A mudança sugeriu a Aristóteles a teoria da matéria e da forma. Em toda transformação há um substrato que não se altera e passa de um estado a outro - é a matéria O que a matéria perde ou adquire nas mudanças é a forma. Todo corpo é composto de matéria e forma. Antes de receber a forma, a matéria diz-se em potência, e, depois de recebê-la, em ato.

e) O homem, como todos os seres da natureza, é composto de matéria e forma. O corpo é a matéria e a alma é a  forma. Assim, o homem é uma substância composta, resultante da união do corpo e da alma. Distinguem-se três espécies de alma, correspondentes aos três graus de vida: vegetativa, sensitiva e racional. No homem, a alma é o princípio de todos os fenômenos vitais. Os instrumentos de sua atividades são de cinco espécies: nutritiva, sensitiva, apetitiva, locomotiva e racional.

f) Existem duas formas de conhecimento: o sensitivo e o intelectivo, distintos, mas intimamente relacionados. As idéias, formas de conhecimento intelectual, não são inatas. São adquiridas pela alma, através do processo de abstração, realizado sobre a imagem sensitiva, por intermédio de uma faculdade especial - a inteligência ativa.

g) O fim supremo do homem é a felicidade. A felicidade é o resultado do desenvolvimento harmonioso das tendências (potencialidades) de um ser. É a conseqüência natural do exercício perfeito da atividade que o especifica. Sendo a razão a atividade característica e essencial do homem, a contemplação de Deus, que é a verdade mais alta e inteligível, será o seu fim último e a sua felicidade suprema. O Meio de alcançá-la é a virtude que consiste em dominar os apetites irracionais e em subordinar a atividade prática ao império da razão.

h) Em síntese, podemos dizer que Aristóteles repudia a teoria platônica das idéias por um motivo básico: nela os conceitos são todos substância apenas (conteúdo) e não sujeito (forma) - elas possuem uma simplicidade inerte sem qualquer necessidade inerente de dar forma a si mesmas e encarnar-se. Sendo assim, suas várias manifestações sensíveis permanecem um mistério. Elas não podem, assim, explicar convenientemente a realidade das coisas segundo o movimento auto-constitutivo das mesmas, porque não mostram a estrutura interior à própria coisa que lhe obriga a ser o que é.
A matéria é aquilo que dá à coisa a possibilidade de ser, a forma efetiva a possibilidade dada pela matéria organizando-a em uma unidade segundo a perspectiva da finalidade, fazendo assim que a mesma penetre no reino dos fins e inicie seu movimento auto-construtivo peculiar. Explica-se, portanto, não só o que a coisa é, mas também por que e como ela vem a ser o que é.
O mundo para Aristóteles compõe-se, portanto, destas duplas determinações: matéria e forma - potência e ato - sendo assim, ele não é apenas “matéria inerte” mas, essencialmente, “força criativa”.



sexta-feira, 27 de setembro de 2013

SOBRE A FILOSOFIA II

O mundo tem visto alguns filósofos maravilhosos. Desafortunadamente, as pessoas não têm podido entender as palavras que esses grandes filósofos escreveram. Muitos dos seus escritos parecem ter sido feitos para estudiosos que já sabem o que está sendo discutido ali. O resto de nós, provavelmente, teria de passar meses ou anos tentando imaginar o que eles estariam dizendo e por quê.
Se pudéssemos começar do princípio, com uma introdução sensível e compreensível, seríamos todos capazes de entender algo do que os filósofos estão falando. Isto seria de imensa valia para nós, não só porque nos levaria a compreender alguns pensamentos profundos que poderíamos distribuir nas festas, impressionando os amigos, mas porque é bom, pelo menos uma vez na vida, ficarmos expostos a algo um pouco mais provocante que os programas de TV. Algo no qual todos nós estejamos envolvidos e que fale a nós todos.
Por exemplo, uma pessoa que lê, e entende, os pensamentos de um filósofo sobre a justiça, prosseguirá com um sentimento de ter-se tornado uma pessoa melhor - com um sentimento aumentado de que ele ou ela deve crer na justiça e na verdade, e que é importante para todos falar de tais coisas. Esta mensagem não é algo que você tire necessariamente do jornal diário, e ela também não aparece muitas vezes no seu ambiente de trabalho, e quando as pessoas dogmáticas falam dela, elas falam de uma forma muito restritiva, evitando tratar da justiça e da verdade como coisas que são importantes e igualmente válidas para todas as pessoas.
A motivação filosófica é um impulso natural no homem? A propósito William James afirma existir em todos nós um curioso fascínio em ouvir falar de temas amplos e de coisas profundas, mesmo que não os compreendamos inteiramente. De qualquer forma sentimos a vibração contagiante do problema, sentimos e gostamos da proximidade da vastidão. Se num recinto público qualquer, por exemplo, começa-se a estabelecer uma controvérsia sobre o livre-arbítrio ou a onisciência divina, ou mesmo sobre o bem e o mal, imediatamente todos no lugar aguçam os seus ouvidos e, se a ocasião permitir, entram imediatamente na discussão. Isto porque os resultados da filosofia concernem a todos nós de maneira extremamente vital, as palavras são de James, e os estranhos argumentos que ela elabora roçam agradavelmente em nosso senso de sutileza ou ingenuidade. “A filosofia é, ao mesmo tempo, a mais sublime e a mais trivial das atividades humanas”.(William James, Pragmatism )
Julgando pelo amontoado relativo de tempo que as pessoas gastam lendo e falando acerca da justiça e da verdade, comparado, por exemplo, com o tempo que gastam discutindo sobre a melhor forma de aplicar e investir dinheiro, ou sobre a decoração da casa, ou sobre o carro importado que querem comprar, devemos ser levados a crer que essas pessoas não acreditam (ou pelo menos não se dão conta) que tais valores básicos são muito importantes. Mas eles são. Se isso é verdade, então aqueles de nós que se importam com tais questões teriam mais razões para tornarem-se ainda mais capazes de pensar e falar dessas coisas.
Há uma curiosa história contada por Platão sobre Tales de Mileto: “Enquanto observava as estrelas, olhando para o alto, Tales caiu em um poço. Presenciando o acontecido, uma espirituosa serva trácia diz-lhe gracejos: ele queria saber o que havia no céu, mas permanecia-lhe oculto o que estava diante dele e a seus pés.” O filósofo no poço nos mostra o pouco caso que o senso comum faz da filosofia. Não sendo capaz de compreender o sentido e importância das indagações filosóficas, o homem comum zomba delas como o cachorro que late para aquilo que não compreende. Porém Platão dá a história uma interpretação mais profunda. “A mesma troça atinge a todos os que vivem na filosofia. De fato, a alguém assim se oculta o que é próximo ou vizinho, não apenas com respeito ao que faz, mas também a se é realmente humano ou não. Se obrigado a falar diante do tribunal, ou em qualquer outro lugar, sobre o que está a seus pés ou diante de seus olhos, o filósofo provoca risos não só de moças trácias, mas de todos os presentes. Por sua inexperiência, cai em poços e na perplexidade; sua espantosa falta de jeito faz com que pareça ingênuo”. (Weischedel. A escada dos fundos da filosofia.) 
Platão foi menosprezado pelo público ateniense quando lhes dirigia um discurso acerca do Bem; Hegel foi desafiado por Krug a deduzir racionalmente a pena que usava para escrever os seus textos. Em todas as épocas as pessoas demonstram não saber do que a filosofia  trata e tentam ridicularizá-la, porém, vem o decisivo: “ Mas o que é o homem e o que, diferentemente dos demais seres, cabe a ele fazer e sofrer -, é isso que o filósofo procura e se esforça para investigar.” Assim a coisa se inverte: quando se trata da essência da justiça, da virtude e de outras coisas de maior valor, são os outros que vacilam e não sabem o que fazer e se tornam ridículos. E então terá chegado a vez do filósofo.
O mundo possui muitas tradições filosóficas e, se o tempo permitisse, deveríamos estudá-las todas. Mas, se pudéssemos estabelecer prioridades, deveríamos começar por aquela tradição que mais impacto causou na cultura ocidental e mais luz trouxe aos nossos problemas. Deveríamos começar com a  Grécia antiga - e, ao longo do estudo, com certas modificações de percurso introduzidas pelas fontes clássicas de Roma e do Cristianismo. Estas tradições filosóficas foram responsáveis pela formação da maior parte do pensamento jurídico, político, social, científico e cultural da Europa e da América.
Assim, talvez pudéssemos saber quem nós somos, cobrando de nós mesmos o que fomos. E assim, conhecendo aquilo que nos consiste, não naufragaríamos no mar tumultuoso de nossas próprias circunstâncias. Conscientes disso estaríamos aptos a nos transformar em pessoas melhores, plenamente desenvolvidas e livres, capazes de gozar da verdadeira felicidade que só a total realização de nossa própria natureza nos capacita. Amando e conhecendo o que há de melhor em nós mesmos não estaríamos a mercê dos prazeres fugazes e dos gozos passageiros, mas seríamos como o bom timoneiro que conduz a nave a bom porto e ancora na plenitude do existir.
Não há a menor dúvida sobre quando a filosofia grega atinge o estatuto de um sistema universal de pensamento. Como disse Alfred North  Whitehead: “A mais segura caracterização geral da tradição filosófica européia é que ela consiste numa série de notas de pé de página às obras de Platão.”
Começar a filosofar e começar por Platão. Ora, mas Platão não é um pensador muito distante de nós, de forma que não tem mais nada a nos dizer hoje? Mas não, Platão continua a nos dizer muito porque em todos os seus textos é de nós que ele fala, “do homem preso na tripla problemática característica do seu destino: do indivíduo que procura a satisfação, do cidadão que quer a justiça, do espírito que reclama o saber; e a sua fala ressoa singularmente porque emana de um tempo e de um lugar de origem onde foram tomadas, em circunstâncias excepcionais, decisões que, doravante e por mais invenções que depois fossem feitas, determinaram  a nossa cultura.” [ Chatelêt, Platão ]



A PROPÓSITO DA FILOSOFIA


Qualquer um que reflita por um momento sobre a conjuntura em que vivemos nos dias atuais descobrirá que o nosso mundo é totalmente avesso ao patrimônio filosófico. Vivemos em uma sociedade da imagem que despreza o conteúdo e fixa-se nas aparências generalizantes e nas formas inertes que não se movem por si, mas empurradas pelos interesses materiais daqueles que nos querem escravizar.  O mundo do espetáculo é também aquele das sombras e dos simulacros em que o que vale sempre é o que menos se pode dotar de valor.
Fragmentação, fuga para o irracional, isolamento e alienação são as realidades que nos governam enquanto não nos tornamos capazes de nos governar, de romper com as exterioridades e aparências fugidias e nos apossarmos da verdade que está em nós mesmos, em nossa capacidade de pensar e agir de forma consciente e plena. Quem aposta na consciência dá um passo rumo à filosofia e este passo significa um salto na direção de sua própria emancipação.
 A filosofia constitui antes de tudo uma redescoberta do mundo que começa como um pensar por conta própria. Ernst Bloch disse que quem pensa por si mesmo não aceita nada como fixo nem definitivo, nem os fatos amansados nem as generalidades inertes, menos ainda os chavões cheios de odor cadavérico de nossa caverna pós-moderna. "Mas aquele que aprende de verdade deixa-se afetar ativamente pela matéria, considera-se capaz de viver sobre a marcha e romper as cascas das coisas: encontra-se como a sentinela nos postos fronteiriços da vanguarda. Quem ao aprender comporte-se passivamente limitando a assentir com a cabeça, logo cairá no sono. Ao contrário, quem esteja na coisa e marche com ela, por seus caminhos não trilhados, alcança a maioridade e se encontra enfim em condição de distinguir entre o amigo e o inimigo e de saber onde a verdade abre caminho.”[1]
É ainda Bloch quem afirma, “O trote do burro levado pelas rédeas é cômodo, sem dúvida, mas os conceitos enérgicos são os que correspondem à juventude e à virilidade.”[2]
Nós que nos perdemos nas contradições do relativismo, que escolhemos a trilha mais fácil e nos desorientamos na selva dos estímulos que apelam aos nossos desejos mesquinhos sem nos oferecer o mapa que nos conduza para fora do labirinto, devemos arriscar algo que a maioria recusa-se a experimentar. Tentar encontrar a saída por nós mesmos, dispondo de nossos próprios recursos. Para isso necessitamos nos apoiar em uma tradição de pensadores críticos que diagnosticaram a nossa miséria, sem, no entanto, terem conseguido eles mesmos superá-la. Devemos apelar para a tradição dos fracassados. Fazer um pouco de filosofia marginal. 
Ser é fazer-se e o humano é aquele que se faz ao se construir constantemente como tal. No caminho do conhecimento, da liberdade e da realização pessoal a filosofia crítica e os filósofos radicais, aqueles que tomam as coisas pela raiz - e, segundo Marx, a raiz do homem é o próprio homem - nos fornecerão a bússola que norteará nosso caminhar. Não caminharão por nós, mas nos forçarão a fazê-lo por nós mesmos. Só assim podem nos ajudar, porque somente desta forma querem nos orientar: servindo de exemplo e guia  no trajeto de nossa autoconstrução.



[1] BLOCH. Subjekt-Objekt. Erläuterungen zu Hegel. Suhrkamp Verlag, Frankfurt. 1962. Trad. Plinio Toledo.
[2] IDEM

quinta-feira, 12 de setembro de 2013

O Logos de Heráclito



“Este Logos, os homens, antes ou depois de o haverem ouvido, jamais o compreendem. Ainda que tudo aconteça conforme este Logos, parecem não ter experiência experimentando-se em tais palavras e obras, como eu as exponho, distinguindo e explicando a natureza de cada coisa. Os outros homens  ignoram o que fazem em estado de vigília, assim como esquecem o que fazem durante o sono.” Heráclito
  
O fragmento 1 era evidentemente o proêmio da obra de Heráclito e nele, como era costume nos tratados da época, começa-se por falar da própria obra, denominada, também, habitualmente Logos, ou seja, algo assim como coisa que se diz, relato, discurso. O problema é que Logos é para Heráclito muito mais que isso; é um conceito crucial de sua própria interpretação do mundo. Além de ser o discurso de Heráclito que, como tal, pode ser ouvido por seus ouvintes- e, ao que parece, não compreendido- é a linguagem mesma, pelo que é amiúde qualificada por seu autor de comum. Porém há mais: Heráclito herda  outra antiga acepção do termo que em grego valia como proporção e, na boca do filósofo, chega a constituir-se em um tipo de princípio, padrão ou norma  universal , uma espécie de estrutura de acordo com a qual ( e segundo cujas proporções ) acontecem todas as coisas no mundo. Um padrão de natureza dialética.
Logos é, portanto, uma explicação lingüística e, ao mesmo tempo, uma entidade real, dentro da unidade própria do pensamento arcaico, entre o homem e a coisa. Daí a tradução Razão, que em português reflete palidamente o logos original, porém ainda conserva em nossa língua essa tripla conotação lingüística, aritmética e lógica. ( Garcia Calvo assinala que em espanhol o termo razão guarda a mesma tripla conotação )

Marcovich agrupa dois fragmentos ( 23-24 ) sobre a base de que se trata de inferências acerca do caráter comum, isto é, da validez universal da razão, que interpreta como estendida a quatro planos:
a) o lógico- a razão é operante em todas as coisas ( fr. 23, cf. o 1 );

b) o ontológico- segundo o qual a razão é um  substrato unificador sob a pluralidade de manifestações das coisas, quer dizer, constitui a unidade do mundo;

c) o gnosiológico- segundo o qual a compreensão da razão é condição imprescindível para a correta  compreensão do mundo;


d) o ético- a razão é também um guia para a conduta diária.

Uma palavra sobre a Physis

Em sentido geral, o termo grego physis designa, no contexto da filosofia pré-socrática, a Natureza, entendida não só como a totalidade do mundo físico imediatamente apreensível aos sentidos, mas, especificamente, como o fundo primordial de onde dimanam todos os componentes do cosmos, sobre cuja base estes componentes se sustentam e ao qual retornam após terem cumprido o ciclo de suas existências. 
Além de significar a Natureza tal como é comumente entendida, a palavra physis abarca também, segundo o que assevera Werner Jaeger, “o fundo originário das coisas, aquilo a partir do qual se desenvolvem e pelo qual se renova constantemente o seu desenvolvimento; em outras palavras, a realidade subjacente às coisas da nossa experiência.”[1] (grifos meus)  John Burnet, por sua vez, afirma que “na língua filosófica grega, Physis designa sempre o que é primário, fundamental e persistente em oposição ao que é secundário, derivado e transitório.”[2] (grifos meus)
Como é possível depreender do significado filosófico do termo physis, a filosofia nasce e começa a se desenvolver na Grécia a partir de um novo posicionamento do homem diante do mundo. Conforme observou Garcia Morente,
O primeiro esforço filosófico do homem foi feito pelos gregos e começou sendo um esforço para discernir entre aquilo que tem uma existência meramente aparente e aquilo que tem uma existência real, uma existência em si, uma existência primordial, irredutível a outra. (...) Estes filósofos gregos procuram qual é ou quais são as coisas que têm uma existência em si. Eles chamavam a isto o ‘princípio’, nos dois sentidos da palavra: como começo e como fundamento de todas as coisas.[3]  

A physis é este “princípio”, este começo e fundamento a que se refere Garcia Morente. Desta forma, podemos afirmar que se a consciência mítica do homem primitivo operava mediante um embaralhamento espontâneo da realidade cotidiana com a sobre-realidade sacramental, embaralhamento este resultante de uma inserção mais ou menos completa da existência humana na paisagem natural, a consciência filosófica, em sua configuração primeira, já executa a dissociação, a distinção entre dois planos distintos de realidade: ela começa desde então por distinguir entre uma existência meramente contingente daquilo que é necessário e fundamental, entre as coisas que aparecem e o princípio ou fundamento que lhes confere existência e significado.
No contexto do teísmo dos pré-socráticos, physis significa a substância física primordial, o princípio ou arché, da qual eram feitas as coisas e o processo de crescimento destas mesmas coisas. Esta substância era viva, daí divina e, logo, imortal e indestrutível.
Assim, a physis dos primeiros filósofos tinha movimento e vida, mas com a remoção enfática, feita por Parmênides, da Kinésis  do reino do ser, a noção de physis foi, de fato, destruída, passando a iniciação do movimento para agentes exteriores, v.g. o “Amor” e o “Ódio” de Empédocles (cf. Diels, frg. 318 A 28) e o Nous de Anaxágoras.
É neste sentido que se pode afirmar dos milesianos que eles representam o exemplo mais característico dos fisiólogos, daqueles que orientaram a sua pesquisa no sentido de determinar o princípio material imanente ao cosmos.




[1] Jaeger, Werner, La Teologia de los primeros Filosofos griegos, México, F.C.E., 1952, pág. 26.
[2] Burnet, John, L’aurore de la philosophie grecque, Paris, Payot, 1952, pág. 26.
[3] Morente, M.G., Lições preliminares de filosofia, São Paulo, Mestre Jou, pp. 68/69.

quinta-feira, 29 de agosto de 2013

SOBRE A FILOSOFIA 1



Digamos que você queira conhecer o mundo. Por onde você deveria começar?
Você poderia procurar por uma verdade que pudesse ser a explicação de tudo. Tal verdade pode ser chamada Salvação, ou Iluminação, ou Nirvana. Assim, você deveria engajar-se numa experiência mística para conseguir realizar seu objetivo. Este é o caminho seguido pela religião e a resposta que ela dá advém de um mergulho existencial no absoluto, uma revelação imediata e vivida do sentido universal que abarca  todas as coisas e torna o mundo e nossas vidas significativos para nós.
Você poderia, por outro lado, interessar-se por uma série de verdades particulares concernentes a uma série de coisas distintas, na esperança de que todas elas pudessem ser, de alguma forma, reunidas e, deste modo, produzir um quadro coerente da vida. Este é o caminho da ciência.
Melhor ainda, você poderia procurar por uma resposta mais real e humana, alguma coisa que se situasse entre esses dois extremos artificiais. Você pode usar o seu senso comum, ou sua razão, ou a lógica - como a ciência faz - mas pode também focalizar sua atenção e seu pensamento nas grandes questões - como a religião faz. Esta é a filosofia.
Não se pode duvidar nem por um minuto que os filósofos fazem mais perguntas que eles podem responder. Mas é bom que seja assim. Isto mostra que a filosofia é alguma coisa viva, que acompanha as transformações do mundo e das nossas vidas e tenta ajustar-se a elas, elaborando questões e procurando respostas que realmente nos tocam e têm importância para nós. Ela cresce e se transforma junto com o mundo sobre o qual ela medita e no qual ela se insere, tentando transformá-lo num lugar mais ajustado às reais necessidades e potencialidades dos homens. Por isso, a filosofia não é, nem nunca foi, um conjunto de doutrinas mortas, sem nada a ver com os problemas atuais do mundo real.
De certa forma, seria enganador tentar descrever a filosofia como se ela fosse um subproduto da religião e das ciências. É exatamente o contrário. A religião não teria nada a dizer se ela não fosse capaz de usar partes seletas da lógica filosófica e do sentido de suas indagações a fim de tornar mais razoáveis as suas próprias doutrinas. Da mesma forma, não poderia haver nenhuma ciência sem as teorias filosóficas e seus objetivos, com os quais contam os cientistas no intuito de encontrarem padrões de invariância dentro do infinito fluxo dos fenômenos brutos. Não nos esqueçamos do que disse um importante cientista ganhador do prêmio Nobel: “De qualquer forma, há e permanecerá na ciência um elemento platônico que não poderíamos afastar sem arruiná-la. Na diversidade infinita dos fenômenos singulares, a ciência só pode procurar os invariantes.” [ Monod, Jacques, O acaso e a necessidade ]
Você pode ser humano sem experimentar o êxtase contemplativo, e você continuaria sendo humano se não chegasse a ser um cientista, mas certamente você não poderia ser humano sem experimentar o conflito entre a fé e os fatos, entre os sonhos e os limites do real; sem ser capaz de projetar, além da linha do horizonte, o último sentido das inconquistadas lonjuras. Por que existe uma diferença tão grande entre o que a gente pensa que deveria acontecer, ou o que acreditamos poder acontecer, e o que efetivamente acontece?
Nós não sabemos. Mas talvez pudéssemos aprender alguma coisa pensando a respeito. E é confortante descobrir que a filosofia nos leva a fazer exatamente isto, sem forçar-nos a adotar qualquer doutrina restrita. Se não podemos supor que qualquer experiência mística ou qualquer ciência possa explicar a totalidade da vida (a religião pode experimentá-la sem explicá-la, a ciência não pode nem experimentá-la nem tampouco explicá-la) podemos ao menos pensar nela. 

sábado, 18 de maio de 2013

Micrópolis II


Quando eu era criança me lembro de ter as palavras presas ao dicionário e os assuntos  sempre disponíveis nas enciclopédias como figuras gravadas na pedra. Bastava consultar um mapa para saber a direção dos caminhos e os limites das fronteiras. Hoje não há mais limites visíveis nem fronteiras fixas e o meu dicionário possui prazo de validade. Ganhei de um amigo um Petit Larousse  que, a confiar na data de fabricação,  não deve mais conter os significados atuais e correntes das palavras. Portando, não devo mais consultá-lo. Os oráculos não são mais confiáveis. Devo doar meu Baltasar Gracián. Não cabem mais aconselhamentos nos bolsos, apenas um tablet de sete polegadas para me manter constantemente atualizado e em contato com os rostos que jamais contemplo e muitos, talvez, nunca reveja. A terra precisa ser constantemente atualizada, navegar com o gps não é preciso. Viver nunca foi preciso. Nenhuma terra nova a desbravar, nenhuma aventura. O destino é como um traço que muda constantemente de direção e elabora figuras imprevisíveis. Não tenho mais nenhum livro de referência, nenhuma teoria que dê conta de me orientar na travessia. Embora tudo tão visível e tão absolutamente controlado, nada determinado ou definido. Daí a impressão de aventura impressa na banalidade do cotidiano. 

domingo, 14 de abril de 2013

Educação e Adestramento


Aristóteles, embora não nos tenha deixado nenhuma obra diretamente relacionada à educação, legou-nos instrumentos conceituais preciosos para entendermos a dinâmica da realização e, por conseguinte o processo educativo. Ao trazer as formas platônicas do lugar celeste onde se encontravam para dentro do mundo sensível, o filósofo  macedônio tornou possível a explicação não só da estrutura das coisas particulares como também o processo formativo dessas mesmas coisas. Saber o que uma coisa é significou, a partir de então, expor o projeto específico que cada uma deve realizar.  Em outras palavras, Aristóteles fez-nos compreender a realização em função de um processo teleonômico no qual cada coisa leva ao pleno cumprimento o seu fim próprio, sua forma definitória. Dessa maneira, foi possível, utilizando os instrumentos conceituais aristotélicos, distinguir a educação do adestramento, compreendendo que aquela não pode ser confundida jamais com um processo de aprendizagem no qual não se verifique um amadurecimento progressivo de possibilidades intrínsecas ao indivíduo.
Assim, acreditamos  que o ser humano não pode ser tratado como o cão de Pavlov, e isso porque há algo que os distingue e faz com que cada um deles seja digno de um tratamento em conformidade com aquilo que eles mesmos são. Há, evidentemente, uma grande diferença entre a adaptação do animal a estímulos associados, como o urso de circo que ao ouvir a música agita-se porque esta lhe faz presente a sensação do eletrochoque, e o indivíduo que cresce em compreensão por meio da vontade consciente e da razão. Neste sentido, seria preciso, antes de tudo, que os educadores se ocupassem em distinguir entre educação e adestramento, determinando o significado preciso dos termos e o papel que assumem na prática pedagógica. E aqui não devíamos nos preocupar em definir conceitos, nem tampouco estipular regras, mas propor uma avaliação dos mesmos em função da prática efetiva, tendo em vista os resultados relativamente à ação caso adotássemos um ou outro conceito como diretriz para a educação; definir os campos de aplicação dos modelos teóricos em concordância com a realidade daqueles aos quais esses modelos se aplicam. 
Em que sentido podemos afirmar que o adestramento não é adequado como método de formação para o homem assim como a educação não pode trazer nenhum beneficio ao animal, e, acima de tudo, estipular um critério preciso segundo o qual possamos avaliar a prática inconsistente de nossos educadores, que os leva confundir educação com adestramento, preconceito corrente do mesmo tipo daquele que confunde erudição com cultura. Há um o perigo evidente em se aplicar métodos adequados ao adestramento animal à prática educativa. O erro todo consistiria em adestrar pensando em educar, e este erro deriva de uma má compreensão, ou de uma total incompreensão, da natureza daquele que se pretende educar.
Pensamos no adestramento como uma prática que visa à adequação do comportamento do indivíduo a determinações exteriores a ele, a partir de procedimentos metodológicos extrínsecos à sua natureza. Ao contrário, a educação só faz sentido para nós se ela fornecer ao indivíduo os meios pelos quais ele possa chegar a mais ampla realização de sua natureza; se ela for como o terreno fértil que possibilita à flor o pleno desabrochar de sua beleza. Entre educação e adestramento há, portanto, uma diferença substancial: uma serve apenas ao condicionamento de organismos animais dotados de um círculo funcional restrito ao binômio estímulo/resposta, enquanto a outra liga-se estruturalmente a um tipo de ser que não vive num universo puramente físico, cujo círculo funcional não foi apenas quantitativamente alargado, mas sofreu também uma mudança qualitativa. No ser humano, o desenvolvimento ganha uma significação e alcance de que carecem o resto dos seres vivos, pois somente nele é possível a efetivação de um processo auto-formativo em que se verifica a possibilidade de um crescimento consciente rumo a determinações qualitativamente superiores: a educação como realização de uma liberdade própria do ser automediado.
Por outro lado, no adestramento há sempre uma vontade que tenta submeter outra vontade e a força a curvar-se ante suas próprias exigências. Há aqui o exercício de um condicionamento que exige do indivíduo adequação total às regras e critérios exteriores à sua natureza. Mediante o adestramento, este é levado a transformar-se, artificialmente, naquilo que ele não é - e, na medida em que nada pode tornar-se aquilo que não é - o resultado é sempre uma deformação desastrosa que nada tem a ver com a verdadeira educação. Na realidade, tal procedimento revela uma total falta de compromisso para com o conhecimento da realidade efetiva daquele a quem se educa, pressuposto da educação correta. Lembremos aqui uma passagem significativa de Platão em que o filosofo grego nos alerta para a necessidade de um pleno conhecimento de nossa própria natureza para que, assim, possamos nos transformar em total conformidade com ela: "Jamais poderemos saber qual é a arte de tornar melhores a nós mesmos (vale dizer: a educação), se ignorarmos o que nós mesmos somos." Em outra passagem do mesmo diálogo Platão nos fornece o sentido da ligação entre autoconhecimento e o cuidado de si próprios à educação, quando sustenta: "Se nos conhecermos, saberemos talvez também qual é o cuidado que devemos ter com nós mesmos; se não nos conhecermos, jamais o saberemos."
Ora, um projeto educacional que não parte de uma avaliação correta da realidade ontológica do homem só pode trazer como resultado para o mesmo a impotência, a frustração, a dor e a infelicidade. Exatamente tudo aquilo que a educação não poderia jamais querer produzir, uma vez que, desta forma, ela entraria em contradição com os fins que ela mesma se determina. E a diferença entre educação e adestramento está justamente ligada à diferença entre liberdade humana e natureza animal.
Por outro lado, a educação verdadeira, ao contrário do adestramento, deve fazer curvar os métodos às necessidades interiores do homem; aquilo que a sua própria natureza possui em estado de potência, fazendo com que ela se realize em ato. Tornar-se aquilo que se é, conforme reza a sentença de Píndaro, mas não sem antes saber exatamente aquilo que se é. Neste sentido, a educação não deve forçar o indivíduo a acomodar-se no leito de Procusto das metodologias previamente estipuladas, mas, antes, avaliar o seu campo de possibilidades autênticas a fim de que, mediante a elaboração de procedimentos metodológicos adequados, possibilite a realização mais plena de suas virtualidades. A potência e o ato, a possibilidade e a efetividade são categorias com as quais deve necessariamente trabalhar a educação correta. Só assim poderíamos trazer ao indivíduo que se educa a oportunidade de crescer em capacidade, em poder, em realização e em felicidade, procedendo, como queria Spinoza, a desvalorização de todas as paixões tristes em proveito da alegria, transformando a nossa atual "potência de padecer" em "potência de agir".
Sendo assim, o educador deve-se preocupar em não exercer um ofício tirânico sobre o educando, forçando-o a acomodar-se aos seus próprios valores, mas, antes, aprender do indivíduo aquilo que ele é para só então ajudá-lo a desenvolver-se em conformidade com sua própria essência. Neste sentido, o verdadeiro educador é aquele capaz de oferecer ao indivíduo meios adequados para que ele possa realizar o projeto que o especifica. Ou seja, aquele que é capaz de adequar as formalidades do método à realidade do objeto.
A educação é um fato essencialmente humano e como tal deve ser pensada, ou seja, ela deve partir do homem como pressuposto. Como devemos aprender de Aristóteles, o que importa, em primeira instância, ao educador, é orientar-se de acordo com o fim, entendido, no entanto, como determinação interior à própria natureza da coisa. 
Deste modo, é preciso que, antes de mais nada, defina-se o homem que se quer educar, ou seja, que se procure identificar aquilo que é especifico à vida humana sendo, portanto, o que se deve desenvolver no homem como consequência natural do exercício da atividade que o especifica. É preciso, antes de tudo, saber articular os meios com relação aos fins próprios a cada ser. 
Em outras palavras, deve-se pensar a educação como o meio pelo qual é colocada a possibilidade do pleno desenvolvimento das potencialidades humanas e, como tal, é preciso que ela comporte dois momentos fundamentais: em primeiro lugar, a identificação daquilo que caracteriza a forma humana, portanto o que no homem é preciso desenvolver de maneira mais plena; em segundo lugar, a reflexão sobre os meios pelos quais conseguir de maneira adequada tal desenvolvimento. Neste sentido, o problema educacional veicula-se estreitamente à questão ética que propõe aos homens meios para atingir a felicidade. Mas, uma vez que não há felicidade sem realização, não há ética sem educação. O problema é dos mais importantes e dele depende como se vê, a consecução para o homem das mais elevadas finalidades, condizentes com as suas mais altas aspirações.

quinta-feira, 28 de março de 2013

Psicogeografia I



Passeio os traços da cidade
Como se fossem possíveis trajetos de mim mesmo
Sem ser conduzido por quem me traçou;
Apenas vou como um terrorista plano
Munido de um projeto de destruição
Pelo qual seja possível construir uma saída
Desse cipoal de ruas e becos
Manancial de vias e direções
No mapeamento da vida dentro do qual
A liberdade se ilude e confirma sempre
Na repetição dos gestos que povoam a jornada
A inevitável prisão;
Pois quando estico o fio nesses corredores
Ele me leva cada vez mais para dentro
Do labirinto do qual creio que escapo.

sexta-feira, 8 de março de 2013

Quem pensa em abstrato?


“Pensar? Em abstrato? Salve-se quem puder! Assim ouço alguém exclamar a um traidor já vendido ao inimigo... O que se trata de saber é quem pensa em abstrato. Quem pensa em abstrato? O homem inculto, não o culto. Limitar-me-ei a apresentar alguns exemplos demonstrativos desta tese,  os quais todos reconhecerão que, com efeito, a encerram.
   Um assassino é conduzido ao cadafalso. Para o povo comum não é nada mais que um assassino, talvez as damas, ao vê-lo passar, comentem seu aspecto físico, digam que é um homem forte, bonito, interessante. Ao escutar isto, o homem do povo exclamará indignado; como? Um assassino, e bonito? Um conhecedor do homem tratará de indagar a trajetória seguida pela educação deste criminoso; descobrirá talvez em sua história, em sua infância ou em sua primeira juventude, nas relações familiares do pai e da mãe; descobrirá que uma ligeira transgressão deste homem foi castigada com um dureza exagerada que o fez rebelar-se contra a ordem existente; que o fez colocar-se a margem desta ordem e acabou empurrando-o ao crime para poder subsistir. Pois bem, tudo isso é pensar em abstrato; não ver no assassino mais que esta nota abstrata, a de que  é um assassino, de tal modo que esta simples qualidade destrói ou apaga  nele o que haja de natureza humana.
   ‘Veja, os ovos que me queres vender estão podres!’, diz a compradora à camponesa do mercado. ‘Como?’  - Replica esta - ‘Que meus ovos estão podres? É isto o que essa piolhenta se atreve  a dizer de meus ovos ? Como se não soubesse que seus pais, de tanta fome comiam os cotovelos, que sua mãe fugiu com um francês e sua avó morreu no hospital! Veja que colar tão bonito e cheio  de miçangas leva!  E terias que ver  o tipo de camisa ela usa! De onde será que tirou tantos adornos e tantos chapéus? Se não houvesse oficiais na guarnição, muitas não andariam vestidas assim e teriam de passar o dia cerzindo as meias’. Em uma palavra, a vendedora, levada por sua cólera, não deixa escapar nenhum defeito da compradora. Pois bem, essa velha pensa também em abstrato. Vendo tudo: o colar, os chapéus e a camisa da mulher, seus dedos e outras partes do seu corpo, e até seus pais e toda a sua família, única e exclusivamente através do horrível delito cometido por ela ao dizer que os ovos que vendia estavam podres. A partir desse momento, vê tudo o que se refere a essa dama tingido pela cor dos ‘ovos podres’. Por outro lado, creio que aqueles oficiais de que fala a vendedora - se é certa a sua malícia, do que muito duvidamos - poderiam ver na dama coisas muito diferentes.
E, passando agora da velha aos serventes, é preciso dizer que os piores colocados são os que têm de servir a pessoas de estado social inferior e pouca fortuna. Nisso, como em tudo, o homem inculto pensa em abstrato, se dá ares de grande senhor para com os criados, só vê neles seus servidores; aferra-se ao predicado de ‘servidores’ e não sabe sair daí... A mesma diferença percebemos na milícia. No exército austríaco os soldados podem ser açoitados. Os soldados são pois uma canalha. Razão pela qual o soldado raso é concebido pelo oficial como o expoente abstrato de um sujeito açoitável  com o qual ele, um senhor que veste uniforme e cinge espada, tem de se haver, nem que seja para encomendá-lo ao diabo.”

                               G.W.F.Hegel, Werke, (Tradução: Plínio F. Toledo)

domingo, 3 de março de 2013

Uma tese de Popper: Os Milesianos e a Tradição Crítica

“Os deuses não nos revelaram, desde o princípio todas as coisas, mas, no curso do tempo, procurando, podemos aprender, conhecê-las melhor”...

“Com respeito à verdade segura, ninguém a conheceu, nem a conhecerá, nem a respeito dos deuses nem sobre tudo o que falamos. Mesmo se por acaso pronunciássemos a verdade definitiva, não a reconheceríamos - pois tudo é uma trama de opiniões.”
Xenófanes, DK 18, 34

“Não pertence à natureza do homem possuir o conhecimento verdadeiro, mas à natureza divina...”
Heráclito, DK B78



É lícito afirmar que Tales inaugura, a partir de um novo posicionamento diante da verdade e do dogma, a tradição crítica ocidental? E não apenas ele, mas a filosofia pré-socrática em geral? É possível sustentar, como fez Karl Popper, que Tales e a sua escola representam não só o período inaugural da reflexão cosmológica e de um primeiro distanciamento da mesma em relação ao mito mas, com os milesianos, tem início, de fato, a história do pensamento científico no ocidente, entendida como tradição crítica?
Um exame atento do processo evolutivo das teses acerca da physis no interior da escola milesiana revela-nos, de maneira exemplar, um aspecto essencial da dinâmica do progresso científico; constitui um primeiro modelo do pensamento crítico, isto porque a atitude dos milesianos nos coloca numa posição inteiramente nova com relação à função do dogma no contexto das escolas primitivas. O que isto representa?
A função normal do dogma nas escolas primitivas é, sobretudo, a de preservar uma determinada doutrina e mantê-la pura e intacta, imunizando-a contra a crítica. Isto acontece porque, para essas escolas, a verdade, revelada  em sua inteireza aos escolhidos, encontra-se totalmente contida no corpo da doutrina, da qual estes são os guardiões e transmissores privilegiados. Por isso, tais escolas tornam-se doutrinárias e iniciáticas, inacessíveis ao público, transformando-se em seitas fechadas, tributárias de uma verdade divina por cuja preservação os mestres seriam responsáveis. Tal fechamento seria uma das formas de se preservar incólume o conhecimento acessível apenas aos iniciados. Outra forma seria, obviamente, a expulsão dos hereges, daqueles que tentassem introduzir inovações no corpo do conhecimento ortodoxo. O que se deve acentuar, no entanto, é que estas escolas, de um modo geral, fazem uso sempre de expedientes não argumentativos no intuito de manter a autoridade da palavra revelada e a feição original do dogma. O argumento, se porventura for usado, também será devidamente controlado por dispositivos coercitivos, não racionais, portanto. 
Ora, em um ambiente desses seria totalmente impossível o florescimento de uma tradição científica. Não pelo fato de se valerem de dogmas, mas, fundamentalmente, devido à atitude conservadora e a posição reacionária diante deles. Sendo assim, o aparecimento da especulação científica nas colônias gregas deve ser encarado, forçosamente, como resultado de uma mudança de ambiente, como produto de um novo relacionamento entre discípulo e mestre, e de uma mudança de atitude de ambos com relação ao dogma. Somente a partir da instauração deste novo ambiente teria sido possível o aparecimento na Grécia antiga de uma nova linha de pensamento alicerçada na discussão racional.O novo ambiente ao qual nos referimos resultou de uma profunda transformação; no caso grego tal transformação foi amplamente favorecida por um contexto de crise, vale dizer, a crise da Cidade homérica. 
Nos momentos de crise é que frutificam as novas idéias e impõem-se as tomadas de decisão. A situação crítica torna-se a grande inevitabilidade para o homem grego na medida em que lhe coloca ao mesmo tempo uma dificuldade e a irrecusável necessidade de superá-la. A crisis, a separação, o abismo é também o juízo e a decisão diante da grande aporia. Neste sentido é somente a partir dela que se pode gerar a nova luz. O procedimento socrático não correspondia justamente a um método de induzir crises? O indivíduo após a crise é como uma criança: está apto a receber a verdade nova. Assim também são as civilizações.
Em nossa infância somos mais críticos, mais espantados diante das coisas, mais abertos ao novo, com uma maior capacidade de admiração, portanto. [1] No entanto, quando adultos possuímos certo número de verdades sedimentadas pelo hábito que filtram o mundo que nos rodeia através das lentes de nossos preconceitos e predisposições, fechando assim, irremediavelmente, o nosso campo de visão e a nossa capacidade de admiração. Acreditamos então estar de posse de conhecimentos seguros e cometemos inúmeros equívocos tentando defendê-los. Apegamo-nos demasiadamente aos nossos valores adquiridos, aos conceitos e critérios herdados do meio social, cristalizados na tradição e recusamos o progresso que poderia advir de uma visão crítica. Ficamos assim ancorados aos dogmas até que sobrevenha a crise, diante da qual ou naufragamos completamente em nossas circunstâncias ou reformulamos nossas antigas crenças, agora sob a luz de novos princípios. Não foi justamente este movimento do dogma à crise e da crise à crítica que a cultura européia experimentou durante a passagem da Idade Média à Idade Moderna? Pois foi também no interior da crise que nasceu na civilização grega a nova tradição crítica. Isto porque com a crise a civilização tornou-se novamente criança.
O ocidente oscilou sempre entre períodos dogmáticos e críticos. Neste sentido, a grande mudança de paradigma ocorrida com a ciência moderna a partir de Galileu parece-nos, à luz da história, uma redescoberta da tradição crítica fundada pelos milesianos e que se teria perdido, conforme sustenta Popper, com a doutrina da espiteme de Aristóteles: o conhecimento certo e demonstrável.

A resposta de Mileto representou a resposta da razão frente à tradição. Com os monistas jônicos instaurou-se um novo ambiente no qual a força do argumento sobrepujou a aceitação passiva do dogma. Uma contradição aparente: a atitude grega diante do dogma funda o comportamento crítico que se tornou tradição no ocidente. Desde os milesianos o dogma não é mais um instrumento de preservação de uma doutrina definida e definitiva, mas um ponto de apoio, a base sobre a qual é dado ao pensamento construir-se dialeticamente. O exemplo dos milesianos parece perfeito: por meio do exercício do logos dialético as teorias são submetidas a um processo de suprassunção, mediante o qual algo é abandonado e algo é conservado, as deficiências refutadas e as conquistas positivas elevadas a um nível conceitual superior: a ciência torna-se empreendimento coletivo levado a cabo através do diálogo, do conflito de idéias.
Conforme atesta o fragmento 34 de Xenófanes, os pré-socráticos possuíam a consciência de que nos é impossível alcançar a verdade no contexto intransigente da tradição dogmática e que não podemos, tampouco, captá-la isoladamente. Somente no âmbito da tradição crítica é que as gerações poderiam, umas apoiadas nos ombros das outras, aproximar-se da verdade. Aqui as teorias e os dogmas adquirem um novo sentido e abrem novas perspectivas. Neles devemos nos apoiar, a frase é de Platão, “como numa peça de madeira que flutua, em que devemos navegar pela vida afora arrastando os perigos, até que surja a oportunidade de encontrar alguma coisa mais forte e confiável, menos perigosa”...
Como esclarece John Burnet, “Para os gregos o homem é alguma coisa intermediária entre Deus e os outros animais. Comparado a Deus ele é um homem apenas, sujeito ao erro e à morte.”(...) “É óbvio que, a um ser sujeito ao erro e à morte, a sabedoria é, em amplo sentido, impossível, ou seja, é para Deus apenas. Por outro lado, o homem não se pode contentar, como os ‘outros animais’ em permanecer na ignorância. Se ele não pode ser sábio, ele pode ao menos ser um amante da sabedoria.”[2]

Por ter tido esta visão religiosa do homem como um ser intermediário sujeito ao erro, à imprecisão e ao acaso, embora aspirando ao saber, é que o grego pôde fundar a tradição crítica. Tal tradição alicerça-se na crença de que a verdade deve ser buscada com todo o empenho pelo homem, não obstante, durante a busca, as limitações de sua própria natureza acabam por induzi-lo ao erro. Sem o apoio dos outros homens e sem um critério que o oriente durante a investigação o indivíduo estará inevitavelmente fadado a fracassar. Por isso, foi preciso aos pensadores gregos, desde Tales e os milesianos, irem construindo histórica e intersubjetivamente este instrumento de controle que permite às gerações auxiliarem-se uns aos outros corrigindo, mediante o diálogo, os erros acumulados durante o percurso: a razão.
Anaximandro não aceitou passivamente as idéias de seu mestre, Tales de Mileto. Ao contrário, submeteu-as a uma crítica radical, evidenciando as suas falhas e propondo uma teoria alternativa que não incorresse nos mesmos erros cometidos por Tales. Ele tinha percebido, por exemplo, que se admitíssemos a água como origem e princípio de sustentação de todo o cosmos, seria impossível explicar a geração dos opostos. Também a água como matéria limitada não poderia dar origem à infinidade de mundos, uma vez que se esgotaria durante o processo de geração. Por isso, para Anaximandro, o princípio deveria ser algo ilimitado e indeterminado. Anaxímanes, por sua vez, percebendo os méritos e as falhas no pensamento de seus antecessores, intenta construir um modelo que pudesse ser, ao mesmo tempo, uma superação e uma conservação das teorias de seus mestres. No sistema de Anaximandro, o mecanismo da geração permanecia um mistério; era preciso, portanto, admitir uma substância material determinada, como a de Tales e, ao mesmo tempo, infinita cujas variações quantitativas pudessem produzir as diferenciações qualitativas das coisas. É justamente este o caminho tomado por Anaxímenes e que representa uma síntese entre as posições da Tales e Anaximandro.
Dessa maneira, vemos uma idéia evoluir e se ajustar no intervalo de algumas décadas. E o mais importante, conforme apontou Popper, não há evidência nenhuma nas fontes históricas que pudesse sugerir qualquer ruptura, contenda ou cisma entre os milesianos.
 O embate e a sucessão das teses ocorre em um ambiente em que o mestre parece incentivar a crítica às suas teorias como forma de aproximação à verdade. Uma verdade buscada como empreendimento coletivo. Isto nos leva a supor terem sido os milesianos os fundadores da tradição crítica ocidental, a mola propulsora do progresso científico e da tolerância.
Neste novo ambiente inaugurado pelos milesianos, a verdade torna-se meta a que se chega cooperativamente, pois o diálogo não é uma forma de competição, mas a forma por excelência da cooperação.  Aqui o magister dixit da tradição dogmática é substituído pela máxima bíblica que se tornaria palavra séculos depois: a letra mata e o espírito vivifica.
A compreensão de que a palavra escrita cristaliza e mata a procura que deveria ser dinâmica e intersubjetiva teria levado Platão a manter seus escritos sob uma forma viva, a forma do diálogo, em que as doutrinas são submetidas à discussão e não aceitas passivamente; em que o resultado é sempre a culminância de um esforço plural e não a defesa intransigente de um pressuposto submetido à aceitação de todos. Nos diálogos de Platão vive a personificação máxima da tradição crítica fundada pelos milesianos: Sócrates. 
Os diálogos platônicos nos propõem a busca dialética da verdade submetida ao controle racional do pensamento crítico. Neles a Inteligência aproxima-se da verdade apoiada em suas teorias tomadas como hipóteses, consideradas como dogmas provisórios mediante os quais ela constrói barcos cada vez mais seguros sobre os quais possamos navegar em nossa aventura de descoberta.
É neste sentido que vemos a importância da figura de Tales e os milesianos e, de um modo geral, de toda a filosofia pré-socrática. Quando estudamos os pensadores deste período, temos a sensação de que nos encontramos no centro de um grande debate em que um tema inicial, uma primeira hipótese, é trabalhado intensamente até a exaustão. Uma sinfonia magistral que só termina quando foram exploradas todas as possibilidades do tema. Conforme observou Popper, [3] esse debate, que se instaurou na Grécia a partir da escola de Mileto, anunciou, de certo modo, não apenas o racionalismo ético de Sócrates, mas preparou o terreno em que floresceria, no ocidente, a maneira racional de se buscar a verdade: a tradição crítica - a melhor maneira que conhecemos.

Plínio Fernandes Toledo
   



[1] Platão e Aristóteles afirmaram ser a admiração o impulso fundamental que leva o indivíduo a filosofar.   
[2] Burnet, J. Philosophy, in: “The legacy of Greece”
[3] Cf. Popper, Conjecturas e refutações

sábado, 2 de março de 2013

Micrópolis


Homo Domesticus

Sou um homem do campo. Um sujeito do interior sem nenhuma distinção. Um homem comum, com a barriga vazia, a família implorando por comida e dependendo de mim para sobreviver. Nasci para o trabalho cuja rotina dura herdei de meu pai, assim como o pulmão de terra. Os pés cravados no chão sem dele receber nada. Quem pensa que se ganha energia nas trocas diretas entre a pele e o solo se engana. Unhas sujas e pés rachados. Durmo muito cedo. Cochilo no sofá enquanto ouço o som da conversa perder-se, eu afundando no torpor desconexo da falta de sentido. Deixando de ser. Indo embora no entresonho. 
Custa-me dizer alguma coisa. A palavra nunca foi minha amiga e eu nunca precisei dela numa vida dirigida pela ação contínua e sem descanso. Meu trato é seco embora o pasto esteja verde e os animais bem alimentados. Eu mesmo como muito pouco. Eu mesmo preciso de muito pouco. Não sou ninguém, ou melhor, sou ninguém. Tudo o que sou me foi obrigado, desde o nascimento. Não é fácil perceber que as coisas são assim. Nós podendo muito pouco ou nada diante da necessidade. Essa máquina movida por um Deus estranho sobre o qual tudo nos escapa enquanto nos governa.
Quem nos é enquanto somos? É uma pergunta que me sobra sempre no meio da noite quando acordo só e volto a dormir depois de conferir o relógio. Aquilo que me assombra. Sempre a mesma hora e sempre a mesma dúvida. Nem sei se posso chamar de dúvida algo que não sei como me assalta e que não me pertence de nenhuma forma. Nem minha rotina me pertence. Coisa que veio a ser enquanto eu não percebia. Que veio me empurrando na corrente como se fosse um rio barrento. O rio do destino que me constitui.
Coisa estranha pensar assim. Eu que não tenho direito à palavra. Estranho começar agora. Sentir a força de uma necessidade que nunca foi minha me empurrando garganta abaixo pensamentos sem substância. É que fiquei impressionado com a batida de uma canção que visitou minha janela nesta noite sem que a tivesse convidado. Como tudo nessa terra nos vem como um peso que não escolhemos. Veio também que era preciso entender, apesar da falta de recursos de um homem comum, a densidade dessa leveza, do torpor desperto pelo acaso. 
Acontece que nunca acreditei no acaso. Não engulo essa. Não que o mundo fosse formado pelo choque de partículas sem direção navegando o nada. Como explicar então a música em minha janela e a dúvida que sempre me incomoda? São as coisas pequenas que refutam as grandes verdades colhidas da ignorância. As coisas pequenas se alimentam da mesma ignorância das coisas grandes e valem mais que as grandes palavras e servem melhor à desconfiança e alimentam mais desconfiança do que podem todas as certezas. Como a roseira que floresce no centro do pátio de um convento, apesar do inverno. Parte de uma história que ouvi alguém contar.
De qualquer forma a sociedade parece regida sempre pela mesma força de domesticação que pode ser a força mais ameaçadora sobre a terra hoje. Mais que os bichos que infestam os chiqueiros e se instalam nas solas dos meus pés. Há outros bichos mais perigosos que entram em nossa casa com a nossa permissão ou complacência. Que nos confessam de dentro de nossa consciência adormecida, não pelo cansado do trabalho, mas pela preguiça de nossa intimidade devassada. Nós os escravos voluntários ainda continuamos a mercê de um só. O nosso senhor, mais escravo do que nós: nós escravos da ação ele escravo da impotência e do mal que lhe contamina a partir de sua própria posição de comando. O senhor ébrio de poder, inerte em seu trono de grandeza vã, olha sempre para baixo, para aqueles que subjuga e, assim, acaba por se acostumar à baixeza e a se parecer com as forças de baixo; enquanto o escravo oprimido, cujas mãos laboriosas produzem um mundo, olha sempre para cima, aprende a se elevar e se elevaria de fato se não fosse essa praga doméstica que lhe infesta a vida. Alimentados todos pelo delírio cotidiano, escravos todos da necessidade auto-imposta. 
Por que o senhor não se liberta? Por que o servo não se revolta? Por que a miséria do cotidiano sempre se reproduz e as pequenas graças se perdem, sempre, como há de se perder essa insignificante tristeza que se configurou nesse texto desprezível como a  preguiça e o sono e a mansidão de uma vida tramada no silêncio e afogada no nada, irredimida.

Aiko Haiwa

sexta-feira, 1 de março de 2013

Deleuze e o conceito

Não há filosofia sem conceitos. De Platão a Nietzsche o exercício do filosofar não prescinde desses instrumentos insubstituíveis do pensar, aos quais o mesmo Platão deu em suas obras o contorno definido e a função precisa que teriam perdido na modernidade. O conceito: fim ou meio da atividade filosófica? Eis o que nos distingue.

Em sua obra "O que é Filosofia?" Gilles Deleuze insere um trecho de Nietzsche, em que o filósofo alemão tenta determinar a tarefa da filosofia escrevendo:
"os filósofos não devem mais contentar-se em aceitar conceitos que lhe são dados, para somente limpá-los e fazê-los reluzir, mas é necessário que eles comecem por fabricá-los, criá-los, afirmá-los, persuadindo os homens a utilizá-los. Até o presente momento, tudo somado, cada um tinha confiança em seus conceitos, como num dote miraculoso vindo de algum mundo igualmente miraculoso,"
A tese defendida por Deleuze, em defesa da qual ele usa Nietzsche como suporte, é a que afirma que um filósofo é fundamentalmente um fabricante de conceitos, uma espécie de artista intelectual, e a criação do conceito o fim da atividade filosófica. Ao contrário do que pressupunha a cultura ocidental desde Platão e Aristóteles, o exercício da filosofia não se situa no plano teorético, no qual a produção de conceitos serviria como instrumento que estrutura a visão que conexiona um conjunto de fatos e o explica em função do seu nexo essencial, mas mistura-se indistintamente com a atividade poética, criadora de formas e inteiramente sujeita às determinações relativas da subjetividade. Mas o que seria então um conceito, uma mera construção subjetiva ou algo mediante o qual uma ideia é captada, da qual ele é a forma mental da representação? E toda representação pressupõe um representado, um objeto para o pensamento, bem como um meio de expressão que o explicite. Um conceito seria assim o produto de uma operação mental que revela ao pensamento uma essência objetiva exterior e independente dele, da qual ele é a forma de captação. O conceito seria então o fim da atividade filosófica ou um meio do qual ela se serve para pensar seus objetos? Em outras palavras: não há problema em se considerar o filósofo um criador de conceitos, desde que o produto de sua atividade criativa seja um instrumento e não um fim em si mesmo. Caso contrário, a filosofia perderia sua característica distintiva além de enrolar-se numa confusão primária entre meios e fins que desacreditaria a seriedade e precisão lógicas de sua atividades, às quais elas não deveria renunciar. Algumas observações esclarecerão o que quero dizer. Supondo que o Filósofo seja um criador de conceitos, deveríamos considerar que quando ele os cria ele não cria, ao mesmo tempo, a realidade à qual ele pretende referir-se, em relação à qual os seus conceitos devem ser boas ou más formas de aproximação e captação. Numa imagem, os conceitos são malhas gnosiológicas que servem de rede para o pensamento captar seres realmente existentes. Não fosse assim ele, além de não servir para nada, não se distinguiria da criação artística totalmente subjetiva e colada ao arbítrio do criador. Ora, o que importa aqui não é se o filósofo cria ou não conceitos, mas com que finalidade o faz. O conceito não pode ser tomado  como fim da atividade filosófica, mas como meio para se atingir um fim ulterior. É evidente que Platão criou o conceito de Ideia, também é evidente que ele não inventou a ideia ela mesma; apenas abriu, por assim dizer, uma janela que dava para uma realidade antes imperceptível. Com a abertura da janela ele não criou a paisagem, mas o meio de vê-la, da mesma forma que com a trama da rede não se inventa a realidade do peixe, mas a forma de pescá-lo.

Não se deve confundir a atividade pensante com suas representações objetivas, nem tampouco as formas da representação com o conteúdo das mesmas. Platão inventou o termo ideia no intuito de designar uma realidade acessível apenas ao pensamento, da qual as ideias seriam expressão adequada: ele inventou a ideia  mas não o que a ideia designa; deu forma ao conceito mas não inventou a justiça, a ciência, a coragem, etc. que queria captar com seus instrumentos conceituais. Isto é uma coisa óbvia? Sim, mas nem sempre o óbvio é percebido e tomado com ponto de partida de uma reflexão consequente. O que é o óbvio, senão o que é esquecido primeiro?

Quando Hegel, por exemplo, propôs a dialética como método capaz de elevar o pensamento filosófico ao nível da cientificidade, ao qual toda verdadeira filosofia aspirava, teve o cuidado de destacar que o momento dialético não era, de forma absoluta, prerrogativa do pensamento filosófico, instaurando-se como construção subjetiva a priori elaborada pelo intelecto no intuito de satisfazer aos seus próprios fins, mas algo efetivamente presente em todo momento da realidade, como forma de articulação e conteúdo aos quais o intelecto deveria moldar-se em sua busca pelo conhecimento científico:
"Ora, por mais que o intelecto comumente solicite a dialética, não se deve pensar de modo algum que a dialética seja algo presente somente na consciência e na experiência geral. Tudo aquilo que nos circunda pode ser pensado como exemplo da dialética. Nós sabemos que todo finito, ao invés de ser termo fixo e último, é mutável e transeunte: isso nada mais é do que a dialética do finito, mediante a qual o finito, enquanto em si, é diferente de si, sendo impelido também para além daquilo que é imediatamente e transformando-se no seu oposto."
Quer dizer: dialética não se inventa, dialética se descobre, e os conceitos e articulações elaboradas pelo pensamento não são, ou pelo menos não deveriam ser, criações fechadas sobre si mesmas, mas mediações capazes de facultar ao pensamento a possibilidade de aprofundar-se na compreensão do real efetivo, captando seus nexos ontológicos fundamentais. É primacial pois saber articular a função mediadora do conceito e a realidade que ele faz presente ao espírito: distinguir entre meios e fins; entre aquilo que se cria, sua função e aquilo que não se cria, mas cuja percepção apenas se dá mediante as nossas criações, desde que adequadas àquilo para que foram criadas. Deleuze e Nietzsche erram nisso: o conceito não é o fim da atividade filosófica, ele é o meio pelo qual ela se exerce. O filósofo inventa conceitos? Sim. Mas para quê? Com que finalidade? Pois com a invenção do conceito ele não inventa a realidade, ela permanece ali existindo antes e depois dele, independentemente dele. A realidade em si mesma é alheia à atividade do filósofo, ela não se importa com a filosofia.


Plínio Fernandes Toledo