segunda-feira, 31 de outubro de 2016

DISCURSO SOBRE A DIGNIDADE HUMANA


      
   Finalmente, pareceu-me ter compreendido por que razão é o homem o mais feliz de todos os seres animados e digno, por isso, de toda a admiração, e qual enfim a condição que lhe coube em sorte na ordem universal, invejável não só pelas bestas, mas também pelos astros e até pelos espíritos supra-mundanos. Coisa inacreditável e maravilhosa. E como não? Já que precisamente por isso o homem é dito e considerado justamente um grande milagre e um ser animado, sem dúvida digno de ser admirado.
         Mas, escutai, ó Padres, qual é essa condição de grandeza e, com vossa liberalidade, prestai um ouvido benigno e tolerante a este meu discurso.
         Já o sumo Pai, Deus arquitecto, tinha construído segundo leis de arcana sabedoria este lugar do mundo como nós o vemos, augustíssimo templo da divindade. Tinha embelezado a zona super-celeste com inteligências, avivado os globos etéreos com almas eternas, povoado com uma multidão de animais de toda a espécie as partes vis e fermentantes do mundo inferior. Mas, consumada a obra, o Artífice desejava que houvesse alguém capaz de compreender a razão de uma obra tão grande, que amasse a beleza e admirasse a sua grandeza. Por isso, uma vez tudo realizado, como Moisés e Timeu atestam, pensou por último criar o homem. Dos arquétipos, contudo, não ficara nenhum sobre o qual modelar a nova criatura, nem dos tesouros tinha algum para oferecer em herança ao novo filho, nem dos lugares de todo o mundo restara algum no qual se sentasse este contemplador do universo. Tudo estava já ocupado, tudo tinha sido distribuído nos sumos, nos médios e nos ínfimos graus. Mas não teria sido digno da paterna potência não se superar, como se fosse inábil, na sua última obra, não era próprio da sua sapiência permanecer incerta numa obra necessária, por falta de decisão, nem seria digno do seu benéfico amor que quem estava destinado a louvar nos outros a liberalidade divina, fosse constrangido a lamentá-la em si mesmo.
         Estabeleceu, portanto, o ótimo artífice que, àquele a quem nada de especificamente próprio podia conceder, fosse comum tudo o que tinha sido dado parcelarmente aos outros. Assim, tomou o homem como obra da natureza indefinida e, colocando-o no meio do mundo, falou-lhe deste modo: “Ó Adão, não te demos nem um lugar determinado, nem um aspecto que te seja próprio, nem tarefa alguma específica, a fim de que obtenhas e possuas aquele lugar, aquele aspecto, aquela tarefa que tu seguramente desejares, tudo segundo o teu parecer e a tua decisão.A natureza bem definida dos outros seres é refreada por leis por nós prescritas. Tu, pelo contrário, não constrangido por nenhuma limitação, determiná-la-ás para ti, segundo o teu arbítrio, a cujo poder te entreguei. Coloquei-te no meio do mundo para que daí possas olhar melhor tudo o que há no mundo. Não te fizemos celeste nem terreno, nem mortal nem imortal, a fim de que tu, árbitro e soberano artífice de ti mesmo, te plasmasses e te informasses, na forma que tivesses seguramente escolhido. Poderás degenerar até aos seres que são as bestas, poderás regenerar-te até às realidades superiores que são divinas, por decisão do teu ânimo”.
         Ó suma liberalidade de Deus pai, ó suma e admirável felicidade do homem! ao qual é concedido obter o que deseja, ser aquilo que quer. As bestas, no momento em que nascem, trazem consigo do ventre materno, como diz Lucílio, tudo aquilo que depois terão. Os espíritos superiores ou desde o princípio, ou pouco depois, foram o que serão eternamente. Ao homem nascente o Pai conferiu sementes de toda a espécie e germes de toda a vida, e segundo a maneira de cada um os cultivar assim estes nele crescerão e darão os seus frutos. Se vegetais, tornar-se-á planta. Se sensíveis, será besta. Se racionais, elevar-se-á a animal celeste. Se intelectuais, será anjo e filho de Deus, e se, não contente com a sorte de nenhuma criatura, se recolher no centro da sua unidade, tornado espírito uno com Deus, na solitária caligem do Pai, aquele que foi posto sobre todas as coisas estará sobre todas as coisas.

Giovanni Pico della Mirandola


quinta-feira, 28 de maio de 2015

Educação e autoridade

“O filósofo não é alguém que canta, de alguma maneira é alguém que grita.”
                                                                                        Gilles Deleuze
                                                                                             
                    “a politician is an arse upon
                     wich everyone has sat except a man”
                                                         e.e.cummings

Proudhon disse que, em uma determinada sociedade, a autoridade do homem sobre o homem é inversamente proporcional ao estágio de desenvolvimento intelectual que aquela sociedade atingiu. Os anarquistas da extinta, ou suicidada pela sociedade, U.P.P.R sentenciaram, em uma alusão ao evangelho de São João, que não saber é uma forma de ser escravo. Tanto a equação de Proudhon como a máxima dos anarquistas paulistas, podem nos servir de ponto de apoio a uma avaliação da atual crise educacional de que padecemos e sua ligação evidente com os interesses do poder político.
Há muito acreditamos que a maioria de nossas mazelas, econômicas ou sociais, reproduzem-se e se propagam, ameaçando a todos soterrar sob os escombros das desigualdades e injustiças, às custas da falta de educação generalizada de nosso povo. Não seria incorreto afirmar que não existe educação no nosso país, a não ser nas fórmulas institucionais e leis governamentais que, no entanto, tolhem por completo qualquer esperança de uma verdadeira reforma educacional que sirva de apoio à uma retomada do crescimento intelectual no Brasil. Se é que alguma vez tivemos qualquer sinal de crescimento intelectual, a não ser em casos isolados e raras exceções, o que apenas confirma a regra. Há, não obstante, uma desconfiança que as propagandas governamentais não conseguem extirpar, muito embora tentem mostrar o quanto o estado tem feito pela educação, o quanto ele se empenha em melhorá-la. Ora, um estado que se pinta de estado democrático sem, no entanto, confiar à opinião pública qualquer participação ativa nas decisões que mais lhe tocam, privatizando os lucros e socializando as perdas, não pode evidentemente conviver com uma população educada que tenha conquistado, mediante a cultura e a autoconsciência, o estatuto da cidadania. O que fazer então? Tratar de forjar uma aparência enganadora, um véu ideológico que nos mantenha presos às cadeias da ilusão. Exibir a todos um empenho que não se realiza, uma ação que não gera bons frutos, uma preocupação hipócrita que não se evidencia. Em outras palavras: fazer da educação uma bandeira e uma prioridade sem, no entanto, nada fazer pela educação. Dizer que se faz o que efetivamente não se faz, mostrar uma preocupação que não se tem, contabilizar um dinheiro que não se gasta. Ora, como um estado que sobrevive de ilusões e de hipocrisias pode investir justamente na maior inimiga das ilusões e das hipocrisias? Como um estado que vive da falsificação e da mentira pode querer estimular a educação, algo que produz justamente o contrário da falsificação e da mentira? Simples: criando um falso modelo de educação, forjando uma educação falsificada. Fomentando a ignorância disfarçada de esclarecimento. Uma boa forma de se manter um mau governo.
A falta de educação é um dos principais polos que garantem o equilíbrio relativo de um governo injusto e incapaz que, ao invés de se afirmar pelas realizações em favor de quem realmente delas necessita, se fortalece ao assegurar e perpetuar a ignorância de quem vota. Assim, o poder público brasileiro trata de fazer do político um jogo em que vale a habilidade e a capacidade de logro de quem joga e não de que lado está a verdade. Uma política maquiavélica que não cumpre sua justa função, pelo menos o que se esperaria daqueles que tratam das questões comuns, que deveriam ser a busca metódica da verdade e de um governo em concordância com os princípios advindos dessa busca. Algo que se fazia num tempo em que o político ainda não se desvencilhara do ético e a política era uma ciência e não uma estratégia.


quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

A MACEDÔNIO


As coisas não começam
 - É o que digo -
A quem acredita em futuros e coisas passadas;
Ou pelo menos não começam quando são inventadas
O mundo já foi inventado antigo.



segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

Lançamento

Meu novo livro intitulado "A Imagem e o Conceito: ensaios sobre a linguagem da filosofia a a arte", em que procuro resolver questões fundamentais acerca da relação entre a atividade filosófica e a poética, aproximando razão e imaginação, lógica e invenção, mediadas pela intervenção crítica da dialética, fornece uma introdução original ao pensamento de Nietzsche, Deleuze e Adorno que, tenho certeza, será muito útil àqueles que se interessam pela a filosofia.
O livro consiste em uma série de ensaios, arranjados em um quadro dinâmico no qual o conceito e a imagem dialogam através do exame dialógico dos vários sistemas que deles se apropriaram em vários tempos e lugares. Convido o leitor a adquirir o livro que pode ser comprado pela Amazon em suas duas versões, tradicional e eletrônica. Abaixo os links para quem se interessar em adquiri-los:





















LINKS:

Livro:

quinta-feira, 20 de novembro de 2014

Nós

Nós os negros antifascistas,
antilimitesdefinidospelaonipotênciadopoder
ainda teremos muito a fazer
quando o tempo entoar seu chamado de desesperança
 e desassossego
pelos atributos humanos deixados no canto da história;
sem nenhuma esperança, sem nenhum medo
nossos deuses vencidos pela miséria
da consciência ocidental, que bem soube se
aproveitar das armas, da mentira, da violência e do chicote,
em nossas costas lavradas a sal na escuridão do congo,
deverão enfim nos socorrer
quando vier o tempo da chuva e a água
molhar novamente os campos e secar a solidão
de nossa angústia ancestral.
Somente então deveremos nos reconhecer em todos
os olhares, nos encontrar em todos os braços,
nos orgulhar da força de nossa têmpera e, assim,
deixar no canto de nossa felicidade irreal
o calor do corpo que irá acolher todos os
órfãos que, como nós, ainda estão sem lugar
na terra.

(J. Guedes/Trad. Plinio)


sábado, 4 de outubro de 2014

O SEGUNDO ADVENTO



William B. Yeats
(Tradução PlinioF. Toledo)

Girando e girando no amplo turbilhão
Não pode o falcão ouvir o falcoeiro;
Coisas se desfazem; o centro não mais se sustenta;
A mera anarquia impera sobre o mundo,
A vaga de escuro sangue é solta e por toda parte
Afoga-se a cerimônia de inocência;
O melhor perde toda a sua convicção enquanto o pior
Está cheio de intensidade apaixonada.

É claro que alguma revelação está disponível;
É claro que o Segundo Advento está próximo.
O Segundo Advento! Dificilmente são ditas as palavras
Quando a vasta imagem do Spiritus Mundi
Nubla minha visão: algo nas areias do deserto,
Uma forma com o corpo de leão e cabeça humana,
Uma oca e impiedosa mirada como o sol,
Move os seus membros lentos enquanto tudo
Oscila sombras sobre coléricos pássaros desolados.
A escuridão goteja novamente, mas agora eu sei
Que o pesadelo de vinte séculos de pétreo sono
Foi conturbado pelo balanço de um berço.
E que besta brutal, chegando ao fim de sua festa,
Rasteja até Belém para nascer?

  

Oração a um caipira devoto de Nhá Chica.

(Um comentário sobre a gênese do comentário à Milonga pra Adão Ventura, e a grande dúvida suscitada por tudo isso.)


Então foi desse modo que a coisa veio a mim, simples pecador: depois de ler o poema, comecei a escrever o texto, por uma necessidade irresistível, o qual me chegou todo despedaçado e sujo de terra, e eu não tinha em princípio a menor idéia do resultado final, que pôde ter sido muito bem uma questão de sorte. Mas percebi que nessa reunião de pedaços havia uma coisa diferente, um pensamento, ou seja lá o que for, em seu sentido mais puro...e genuíno. Por isso achei que deveria lho enviar.
            O mais curioso foi que, durante o trabalho de composição (extremamente difícil para mim), cheguei num ponto em que pensei que nada mais pudesse ser acrescentado. Então, subitamente, como um raio, caiu-me a metáfora do caminho. E quando a metáfora caiu, unificando tudo o que havia sido escrito e pensado, eu até olhei pra cima para ver quem é que a tinha lançado.
            Essa fulminação – que trouxe à tona um conteúdo, cuja forma de expressão pode ser variável – despertou em mim uma dúvida, que agora é a grande dúvida da minha vida e o centro em torno do qual giram todas as outras. É sobre a frase de Heráclito: “A Polimatia não instrui a inteligência”.
            Deslocada para o mundo de hoje e traduzida em nossa linguagem ela talvez assim se traduza: “Qual é a importância do conhecimento enciclopédico (livresco) para as nossas vidas?” De outra forma: “De que modo devemos conduzir a nossa educação: pela leitura incansável de muitas fontes esparsas ou apenas de umas poucas ou mesmo de uma fonte única?”  “A leitura de muitos livros de muitos autores, que nos coloca em contato com uma variedade imensa de conceitos e esquemas doutrinais, não é um agente facilitador da expressão do nosso próprio pensamento?”[A Polimatia não tornaria mais fácil o exercício da inteligência?] “Ou então devemos, ao modo dos pescadores, lançar nossas redes tanto nos mares da Poesia quanto da Filosofia, a fim de que o pensamento se revele por duas formas alternativas?”
            Qual o significado da educação? É a providência de meios ou caminhos para expressar ou despertar tais conteúdos? Qual a melhor maneira de trazê-los à tona?
            Relendo a Milonga, descobri em dois outros versos o mesmo espírito puro, em seu estado original, mas não sei se poderei escrever algo a respeito, nem se a sorte haverá de me ajudar.

            Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Amém.