quinta-feira, 28 de março de 2013

Psicogeografia I



Passeio os traços da cidade
Como se fossem possíveis trajetos de mim mesmo
Sem ser conduzido por quem me traçou;
Apenas vou como um terrorista plano
Munido de um projeto de destruição
Pelo qual seja possível construir uma saída
Desse cipoal de ruas e becos
Manancial de vias e direções
No mapeamento da vida dentro do qual
A liberdade se ilude e confirma sempre
Na repetição dos gestos que povoam a jornada
A inevitável prisão;
Pois quando estico o fio nesses corredores
Ele me leva cada vez mais para dentro
Do labirinto do qual creio que escapo.

sexta-feira, 8 de março de 2013

Quem pensa em abstrato?


“Pensar? Em abstrato? Salve-se quem puder! Assim ouço alguém exclamar a um traidor já vendido ao inimigo... O que se trata de saber é quem pensa em abstrato. Quem pensa em abstrato? O homem inculto, não o culto. Limitar-me-ei a apresentar alguns exemplos demonstrativos desta tese,  os quais todos reconhecerão que, com efeito, a encerram.
   Um assassino é conduzido ao cadafalso. Para o povo comum não é nada mais que um assassino, talvez as damas, ao vê-lo passar, comentem seu aspecto físico, digam que é um homem forte, bonito, interessante. Ao escutar isto, o homem do povo exclamará indignado; como? Um assassino, e bonito? Um conhecedor do homem tratará de indagar a trajetória seguida pela educação deste criminoso; descobrirá talvez em sua história, em sua infância ou em sua primeira juventude, nas relações familiares do pai e da mãe; descobrirá que uma ligeira transgressão deste homem foi castigada com um dureza exagerada que o fez rebelar-se contra a ordem existente; que o fez colocar-se a margem desta ordem e acabou empurrando-o ao crime para poder subsistir. Pois bem, tudo isso é pensar em abstrato; não ver no assassino mais que esta nota abstrata, a de que  é um assassino, de tal modo que esta simples qualidade destrói ou apaga  nele o que haja de natureza humana.
   ‘Veja, os ovos que me queres vender estão podres!’, diz a compradora à camponesa do mercado. ‘Como?’  - Replica esta - ‘Que meus ovos estão podres? É isto o que essa piolhenta se atreve  a dizer de meus ovos ? Como se não soubesse que seus pais, de tanta fome comiam os cotovelos, que sua mãe fugiu com um francês e sua avó morreu no hospital! Veja que colar tão bonito e cheio  de miçangas leva!  E terias que ver  o tipo de camisa ela usa! De onde será que tirou tantos adornos e tantos chapéus? Se não houvesse oficiais na guarnição, muitas não andariam vestidas assim e teriam de passar o dia cerzindo as meias’. Em uma palavra, a vendedora, levada por sua cólera, não deixa escapar nenhum defeito da compradora. Pois bem, essa velha pensa também em abstrato. Vendo tudo: o colar, os chapéus e a camisa da mulher, seus dedos e outras partes do seu corpo, e até seus pais e toda a sua família, única e exclusivamente através do horrível delito cometido por ela ao dizer que os ovos que vendia estavam podres. A partir desse momento, vê tudo o que se refere a essa dama tingido pela cor dos ‘ovos podres’. Por outro lado, creio que aqueles oficiais de que fala a vendedora - se é certa a sua malícia, do que muito duvidamos - poderiam ver na dama coisas muito diferentes.
E, passando agora da velha aos serventes, é preciso dizer que os piores colocados são os que têm de servir a pessoas de estado social inferior e pouca fortuna. Nisso, como em tudo, o homem inculto pensa em abstrato, se dá ares de grande senhor para com os criados, só vê neles seus servidores; aferra-se ao predicado de ‘servidores’ e não sabe sair daí... A mesma diferença percebemos na milícia. No exército austríaco os soldados podem ser açoitados. Os soldados são pois uma canalha. Razão pela qual o soldado raso é concebido pelo oficial como o expoente abstrato de um sujeito açoitável  com o qual ele, um senhor que veste uniforme e cinge espada, tem de se haver, nem que seja para encomendá-lo ao diabo.”

                               G.W.F.Hegel, Werke, (Tradução: Plínio F. Toledo)

domingo, 3 de março de 2013

Uma tese de Popper: Os Milesianos e a Tradição Crítica

“Os deuses não nos revelaram, desde o princípio todas as coisas, mas, no curso do tempo, procurando, podemos aprender, conhecê-las melhor”...

“Com respeito à verdade segura, ninguém a conheceu, nem a conhecerá, nem a respeito dos deuses nem sobre tudo o que falamos. Mesmo se por acaso pronunciássemos a verdade definitiva, não a reconheceríamos - pois tudo é uma trama de opiniões.”
Xenófanes, DK 18, 34

“Não pertence à natureza do homem possuir o conhecimento verdadeiro, mas à natureza divina...”
Heráclito, DK B78



É lícito afirmar que Tales inaugura, a partir de um novo posicionamento diante da verdade e do dogma, a tradição crítica ocidental? E não apenas ele, mas a filosofia pré-socrática em geral? É possível sustentar, como fez Karl Popper, que Tales e a sua escola representam não só o período inaugural da reflexão cosmológica e de um primeiro distanciamento da mesma em relação ao mito mas, com os milesianos, tem início, de fato, a história do pensamento científico no ocidente, entendida como tradição crítica?
Um exame atento do processo evolutivo das teses acerca da physis no interior da escola milesiana revela-nos, de maneira exemplar, um aspecto essencial da dinâmica do progresso científico; constitui um primeiro modelo do pensamento crítico, isto porque a atitude dos milesianos nos coloca numa posição inteiramente nova com relação à função do dogma no contexto das escolas primitivas. O que isto representa?
A função normal do dogma nas escolas primitivas é, sobretudo, a de preservar uma determinada doutrina e mantê-la pura e intacta, imunizando-a contra a crítica. Isto acontece porque, para essas escolas, a verdade, revelada  em sua inteireza aos escolhidos, encontra-se totalmente contida no corpo da doutrina, da qual estes são os guardiões e transmissores privilegiados. Por isso, tais escolas tornam-se doutrinárias e iniciáticas, inacessíveis ao público, transformando-se em seitas fechadas, tributárias de uma verdade divina por cuja preservação os mestres seriam responsáveis. Tal fechamento seria uma das formas de se preservar incólume o conhecimento acessível apenas aos iniciados. Outra forma seria, obviamente, a expulsão dos hereges, daqueles que tentassem introduzir inovações no corpo do conhecimento ortodoxo. O que se deve acentuar, no entanto, é que estas escolas, de um modo geral, fazem uso sempre de expedientes não argumentativos no intuito de manter a autoridade da palavra revelada e a feição original do dogma. O argumento, se porventura for usado, também será devidamente controlado por dispositivos coercitivos, não racionais, portanto. 
Ora, em um ambiente desses seria totalmente impossível o florescimento de uma tradição científica. Não pelo fato de se valerem de dogmas, mas, fundamentalmente, devido à atitude conservadora e a posição reacionária diante deles. Sendo assim, o aparecimento da especulação científica nas colônias gregas deve ser encarado, forçosamente, como resultado de uma mudança de ambiente, como produto de um novo relacionamento entre discípulo e mestre, e de uma mudança de atitude de ambos com relação ao dogma. Somente a partir da instauração deste novo ambiente teria sido possível o aparecimento na Grécia antiga de uma nova linha de pensamento alicerçada na discussão racional.O novo ambiente ao qual nos referimos resultou de uma profunda transformação; no caso grego tal transformação foi amplamente favorecida por um contexto de crise, vale dizer, a crise da Cidade homérica. 
Nos momentos de crise é que frutificam as novas idéias e impõem-se as tomadas de decisão. A situação crítica torna-se a grande inevitabilidade para o homem grego na medida em que lhe coloca ao mesmo tempo uma dificuldade e a irrecusável necessidade de superá-la. A crisis, a separação, o abismo é também o juízo e a decisão diante da grande aporia. Neste sentido é somente a partir dela que se pode gerar a nova luz. O procedimento socrático não correspondia justamente a um método de induzir crises? O indivíduo após a crise é como uma criança: está apto a receber a verdade nova. Assim também são as civilizações.
Em nossa infância somos mais críticos, mais espantados diante das coisas, mais abertos ao novo, com uma maior capacidade de admiração, portanto. [1] No entanto, quando adultos possuímos certo número de verdades sedimentadas pelo hábito que filtram o mundo que nos rodeia através das lentes de nossos preconceitos e predisposições, fechando assim, irremediavelmente, o nosso campo de visão e a nossa capacidade de admiração. Acreditamos então estar de posse de conhecimentos seguros e cometemos inúmeros equívocos tentando defendê-los. Apegamo-nos demasiadamente aos nossos valores adquiridos, aos conceitos e critérios herdados do meio social, cristalizados na tradição e recusamos o progresso que poderia advir de uma visão crítica. Ficamos assim ancorados aos dogmas até que sobrevenha a crise, diante da qual ou naufragamos completamente em nossas circunstâncias ou reformulamos nossas antigas crenças, agora sob a luz de novos princípios. Não foi justamente este movimento do dogma à crise e da crise à crítica que a cultura européia experimentou durante a passagem da Idade Média à Idade Moderna? Pois foi também no interior da crise que nasceu na civilização grega a nova tradição crítica. Isto porque com a crise a civilização tornou-se novamente criança.
O ocidente oscilou sempre entre períodos dogmáticos e críticos. Neste sentido, a grande mudança de paradigma ocorrida com a ciência moderna a partir de Galileu parece-nos, à luz da história, uma redescoberta da tradição crítica fundada pelos milesianos e que se teria perdido, conforme sustenta Popper, com a doutrina da espiteme de Aristóteles: o conhecimento certo e demonstrável.

A resposta de Mileto representou a resposta da razão frente à tradição. Com os monistas jônicos instaurou-se um novo ambiente no qual a força do argumento sobrepujou a aceitação passiva do dogma. Uma contradição aparente: a atitude grega diante do dogma funda o comportamento crítico que se tornou tradição no ocidente. Desde os milesianos o dogma não é mais um instrumento de preservação de uma doutrina definida e definitiva, mas um ponto de apoio, a base sobre a qual é dado ao pensamento construir-se dialeticamente. O exemplo dos milesianos parece perfeito: por meio do exercício do logos dialético as teorias são submetidas a um processo de suprassunção, mediante o qual algo é abandonado e algo é conservado, as deficiências refutadas e as conquistas positivas elevadas a um nível conceitual superior: a ciência torna-se empreendimento coletivo levado a cabo através do diálogo, do conflito de idéias.
Conforme atesta o fragmento 34 de Xenófanes, os pré-socráticos possuíam a consciência de que nos é impossível alcançar a verdade no contexto intransigente da tradição dogmática e que não podemos, tampouco, captá-la isoladamente. Somente no âmbito da tradição crítica é que as gerações poderiam, umas apoiadas nos ombros das outras, aproximar-se da verdade. Aqui as teorias e os dogmas adquirem um novo sentido e abrem novas perspectivas. Neles devemos nos apoiar, a frase é de Platão, “como numa peça de madeira que flutua, em que devemos navegar pela vida afora arrastando os perigos, até que surja a oportunidade de encontrar alguma coisa mais forte e confiável, menos perigosa”...
Como esclarece John Burnet, “Para os gregos o homem é alguma coisa intermediária entre Deus e os outros animais. Comparado a Deus ele é um homem apenas, sujeito ao erro e à morte.”(...) “É óbvio que, a um ser sujeito ao erro e à morte, a sabedoria é, em amplo sentido, impossível, ou seja, é para Deus apenas. Por outro lado, o homem não se pode contentar, como os ‘outros animais’ em permanecer na ignorância. Se ele não pode ser sábio, ele pode ao menos ser um amante da sabedoria.”[2]

Por ter tido esta visão religiosa do homem como um ser intermediário sujeito ao erro, à imprecisão e ao acaso, embora aspirando ao saber, é que o grego pôde fundar a tradição crítica. Tal tradição alicerça-se na crença de que a verdade deve ser buscada com todo o empenho pelo homem, não obstante, durante a busca, as limitações de sua própria natureza acabam por induzi-lo ao erro. Sem o apoio dos outros homens e sem um critério que o oriente durante a investigação o indivíduo estará inevitavelmente fadado a fracassar. Por isso, foi preciso aos pensadores gregos, desde Tales e os milesianos, irem construindo histórica e intersubjetivamente este instrumento de controle que permite às gerações auxiliarem-se uns aos outros corrigindo, mediante o diálogo, os erros acumulados durante o percurso: a razão.
Anaximandro não aceitou passivamente as idéias de seu mestre, Tales de Mileto. Ao contrário, submeteu-as a uma crítica radical, evidenciando as suas falhas e propondo uma teoria alternativa que não incorresse nos mesmos erros cometidos por Tales. Ele tinha percebido, por exemplo, que se admitíssemos a água como origem e princípio de sustentação de todo o cosmos, seria impossível explicar a geração dos opostos. Também a água como matéria limitada não poderia dar origem à infinidade de mundos, uma vez que se esgotaria durante o processo de geração. Por isso, para Anaximandro, o princípio deveria ser algo ilimitado e indeterminado. Anaxímanes, por sua vez, percebendo os méritos e as falhas no pensamento de seus antecessores, intenta construir um modelo que pudesse ser, ao mesmo tempo, uma superação e uma conservação das teorias de seus mestres. No sistema de Anaximandro, o mecanismo da geração permanecia um mistério; era preciso, portanto, admitir uma substância material determinada, como a de Tales e, ao mesmo tempo, infinita cujas variações quantitativas pudessem produzir as diferenciações qualitativas das coisas. É justamente este o caminho tomado por Anaxímenes e que representa uma síntese entre as posições da Tales e Anaximandro.
Dessa maneira, vemos uma idéia evoluir e se ajustar no intervalo de algumas décadas. E o mais importante, conforme apontou Popper, não há evidência nenhuma nas fontes históricas que pudesse sugerir qualquer ruptura, contenda ou cisma entre os milesianos.
 O embate e a sucessão das teses ocorre em um ambiente em que o mestre parece incentivar a crítica às suas teorias como forma de aproximação à verdade. Uma verdade buscada como empreendimento coletivo. Isto nos leva a supor terem sido os milesianos os fundadores da tradição crítica ocidental, a mola propulsora do progresso científico e da tolerância.
Neste novo ambiente inaugurado pelos milesianos, a verdade torna-se meta a que se chega cooperativamente, pois o diálogo não é uma forma de competição, mas a forma por excelência da cooperação.  Aqui o magister dixit da tradição dogmática é substituído pela máxima bíblica que se tornaria palavra séculos depois: a letra mata e o espírito vivifica.
A compreensão de que a palavra escrita cristaliza e mata a procura que deveria ser dinâmica e intersubjetiva teria levado Platão a manter seus escritos sob uma forma viva, a forma do diálogo, em que as doutrinas são submetidas à discussão e não aceitas passivamente; em que o resultado é sempre a culminância de um esforço plural e não a defesa intransigente de um pressuposto submetido à aceitação de todos. Nos diálogos de Platão vive a personificação máxima da tradição crítica fundada pelos milesianos: Sócrates. 
Os diálogos platônicos nos propõem a busca dialética da verdade submetida ao controle racional do pensamento crítico. Neles a Inteligência aproxima-se da verdade apoiada em suas teorias tomadas como hipóteses, consideradas como dogmas provisórios mediante os quais ela constrói barcos cada vez mais seguros sobre os quais possamos navegar em nossa aventura de descoberta.
É neste sentido que vemos a importância da figura de Tales e os milesianos e, de um modo geral, de toda a filosofia pré-socrática. Quando estudamos os pensadores deste período, temos a sensação de que nos encontramos no centro de um grande debate em que um tema inicial, uma primeira hipótese, é trabalhado intensamente até a exaustão. Uma sinfonia magistral que só termina quando foram exploradas todas as possibilidades do tema. Conforme observou Popper, [3] esse debate, que se instaurou na Grécia a partir da escola de Mileto, anunciou, de certo modo, não apenas o racionalismo ético de Sócrates, mas preparou o terreno em que floresceria, no ocidente, a maneira racional de se buscar a verdade: a tradição crítica - a melhor maneira que conhecemos.

Plínio Fernandes Toledo
   



[1] Platão e Aristóteles afirmaram ser a admiração o impulso fundamental que leva o indivíduo a filosofar.   
[2] Burnet, J. Philosophy, in: “The legacy of Greece”
[3] Cf. Popper, Conjecturas e refutações

sábado, 2 de março de 2013

Micrópolis


Homo Domesticus

Sou um homem do campo. Um sujeito do interior sem nenhuma distinção. Um homem comum, com a barriga vazia, a família implorando por comida e dependendo de mim para sobreviver. Nasci para o trabalho cuja rotina dura herdei de meu pai, assim como o pulmão de terra. Os pés cravados no chão sem dele receber nada. Quem pensa que se ganha energia nas trocas diretas entre a pele e o solo se engana. Unhas sujas e pés rachados. Durmo muito cedo. Cochilo no sofá enquanto ouço o som da conversa perder-se, eu afundando no torpor desconexo da falta de sentido. Deixando de ser. Indo embora no entresonho. 
Custa-me dizer alguma coisa. A palavra nunca foi minha amiga e eu nunca precisei dela numa vida dirigida pela ação contínua e sem descanso. Meu trato é seco embora o pasto esteja verde e os animais bem alimentados. Eu mesmo como muito pouco. Eu mesmo preciso de muito pouco. Não sou ninguém, ou melhor, sou ninguém. Tudo o que sou me foi obrigado, desde o nascimento. Não é fácil perceber que as coisas são assim. Nós podendo muito pouco ou nada diante da necessidade. Essa máquina movida por um Deus estranho sobre o qual tudo nos escapa enquanto nos governa.
Quem nos é enquanto somos? É uma pergunta que me sobra sempre no meio da noite quando acordo só e volto a dormir depois de conferir o relógio. Aquilo que me assombra. Sempre a mesma hora e sempre a mesma dúvida. Nem sei se posso chamar de dúvida algo que não sei como me assalta e que não me pertence de nenhuma forma. Nem minha rotina me pertence. Coisa que veio a ser enquanto eu não percebia. Que veio me empurrando na corrente como se fosse um rio barrento. O rio do destino que me constitui.
Coisa estranha pensar assim. Eu que não tenho direito à palavra. Estranho começar agora. Sentir a força de uma necessidade que nunca foi minha me empurrando garganta abaixo pensamentos sem substância. É que fiquei impressionado com a batida de uma canção que visitou minha janela nesta noite sem que a tivesse convidado. Como tudo nessa terra nos vem como um peso que não escolhemos. Veio também que era preciso entender, apesar da falta de recursos de um homem comum, a densidade dessa leveza, do torpor desperto pelo acaso. 
Acontece que nunca acreditei no acaso. Não engulo essa. Não que o mundo fosse formado pelo choque de partículas sem direção navegando o nada. Como explicar então a música em minha janela e a dúvida que sempre me incomoda? São as coisas pequenas que refutam as grandes verdades colhidas da ignorância. As coisas pequenas se alimentam da mesma ignorância das coisas grandes e valem mais que as grandes palavras e servem melhor à desconfiança e alimentam mais desconfiança do que podem todas as certezas. Como a roseira que floresce no centro do pátio de um convento, apesar do inverno. Parte de uma história que ouvi alguém contar.
De qualquer forma a sociedade parece regida sempre pela mesma força de domesticação que pode ser a força mais ameaçadora sobre a terra hoje. Mais que os bichos que infestam os chiqueiros e se instalam nas solas dos meus pés. Há outros bichos mais perigosos que entram em nossa casa com a nossa permissão ou complacência. Que nos confessam de dentro de nossa consciência adormecida, não pelo cansado do trabalho, mas pela preguiça de nossa intimidade devassada. Nós os escravos voluntários ainda continuamos a mercê de um só. O nosso senhor, mais escravo do que nós: nós escravos da ação ele escravo da impotência e do mal que lhe contamina a partir de sua própria posição de comando. O senhor ébrio de poder, inerte em seu trono de grandeza vã, olha sempre para baixo, para aqueles que subjuga e, assim, acaba por se acostumar à baixeza e a se parecer com as forças de baixo; enquanto o escravo oprimido, cujas mãos laboriosas produzem um mundo, olha sempre para cima, aprende a se elevar e se elevaria de fato se não fosse essa praga doméstica que lhe infesta a vida. Alimentados todos pelo delírio cotidiano, escravos todos da necessidade auto-imposta. 
Por que o senhor não se liberta? Por que o servo não se revolta? Por que a miséria do cotidiano sempre se reproduz e as pequenas graças se perdem, sempre, como há de se perder essa insignificante tristeza que se configurou nesse texto desprezível como a  preguiça e o sono e a mansidão de uma vida tramada no silêncio e afogada no nada, irredimida.

Aiko Haiwa

sexta-feira, 1 de março de 2013

Deleuze e o conceito

Não há filosofia sem conceitos. De Platão a Nietzsche o exercício do filosofar não prescinde desses instrumentos insubstituíveis do pensar, aos quais o mesmo Platão deu em suas obras o contorno definido e a função precisa que teriam perdido na modernidade. O conceito: fim ou meio da atividade filosófica? Eis o que nos distingue.

Em sua obra "O que é Filosofia?" Gilles Deleuze insere um trecho de Nietzsche, em que o filósofo alemão tenta determinar a tarefa da filosofia escrevendo:
"os filósofos não devem mais contentar-se em aceitar conceitos que lhe são dados, para somente limpá-los e fazê-los reluzir, mas é necessário que eles comecem por fabricá-los, criá-los, afirmá-los, persuadindo os homens a utilizá-los. Até o presente momento, tudo somado, cada um tinha confiança em seus conceitos, como num dote miraculoso vindo de algum mundo igualmente miraculoso,"
A tese defendida por Deleuze, em defesa da qual ele usa Nietzsche como suporte, é a que afirma que um filósofo é fundamentalmente um fabricante de conceitos, uma espécie de artista intelectual, e a criação do conceito o fim da atividade filosófica. Ao contrário do que pressupunha a cultura ocidental desde Platão e Aristóteles, o exercício da filosofia não se situa no plano teorético, no qual a produção de conceitos serviria como instrumento que estrutura a visão que conexiona um conjunto de fatos e o explica em função do seu nexo essencial, mas mistura-se indistintamente com a atividade poética, criadora de formas e inteiramente sujeita às determinações relativas da subjetividade. Mas o que seria então um conceito, uma mera construção subjetiva ou algo mediante o qual uma ideia é captada, da qual ele é a forma mental da representação? E toda representação pressupõe um representado, um objeto para o pensamento, bem como um meio de expressão que o explicite. Um conceito seria assim o produto de uma operação mental que revela ao pensamento uma essência objetiva exterior e independente dele, da qual ele é a forma de captação. O conceito seria então o fim da atividade filosófica ou um meio do qual ela se serve para pensar seus objetos? Em outras palavras: não há problema em se considerar o filósofo um criador de conceitos, desde que o produto de sua atividade criativa seja um instrumento e não um fim em si mesmo. Caso contrário, a filosofia perderia sua característica distintiva além de enrolar-se numa confusão primária entre meios e fins que desacreditaria a seriedade e precisão lógicas de sua atividades, às quais elas não deveria renunciar. Algumas observações esclarecerão o que quero dizer. Supondo que o Filósofo seja um criador de conceitos, deveríamos considerar que quando ele os cria ele não cria, ao mesmo tempo, a realidade à qual ele pretende referir-se, em relação à qual os seus conceitos devem ser boas ou más formas de aproximação e captação. Numa imagem, os conceitos são malhas gnosiológicas que servem de rede para o pensamento captar seres realmente existentes. Não fosse assim ele, além de não servir para nada, não se distinguiria da criação artística totalmente subjetiva e colada ao arbítrio do criador. Ora, o que importa aqui não é se o filósofo cria ou não conceitos, mas com que finalidade o faz. O conceito não pode ser tomado  como fim da atividade filosófica, mas como meio para se atingir um fim ulterior. É evidente que Platão criou o conceito de Ideia, também é evidente que ele não inventou a ideia ela mesma; apenas abriu, por assim dizer, uma janela que dava para uma realidade antes imperceptível. Com a abertura da janela ele não criou a paisagem, mas o meio de vê-la, da mesma forma que com a trama da rede não se inventa a realidade do peixe, mas a forma de pescá-lo.

Não se deve confundir a atividade pensante com suas representações objetivas, nem tampouco as formas da representação com o conteúdo das mesmas. Platão inventou o termo ideia no intuito de designar uma realidade acessível apenas ao pensamento, da qual as ideias seriam expressão adequada: ele inventou a ideia  mas não o que a ideia designa; deu forma ao conceito mas não inventou a justiça, a ciência, a coragem, etc. que queria captar com seus instrumentos conceituais. Isto é uma coisa óbvia? Sim, mas nem sempre o óbvio é percebido e tomado com ponto de partida de uma reflexão consequente. O que é o óbvio, senão o que é esquecido primeiro?

Quando Hegel, por exemplo, propôs a dialética como método capaz de elevar o pensamento filosófico ao nível da cientificidade, ao qual toda verdadeira filosofia aspirava, teve o cuidado de destacar que o momento dialético não era, de forma absoluta, prerrogativa do pensamento filosófico, instaurando-se como construção subjetiva a priori elaborada pelo intelecto no intuito de satisfazer aos seus próprios fins, mas algo efetivamente presente em todo momento da realidade, como forma de articulação e conteúdo aos quais o intelecto deveria moldar-se em sua busca pelo conhecimento científico:
"Ora, por mais que o intelecto comumente solicite a dialética, não se deve pensar de modo algum que a dialética seja algo presente somente na consciência e na experiência geral. Tudo aquilo que nos circunda pode ser pensado como exemplo da dialética. Nós sabemos que todo finito, ao invés de ser termo fixo e último, é mutável e transeunte: isso nada mais é do que a dialética do finito, mediante a qual o finito, enquanto em si, é diferente de si, sendo impelido também para além daquilo que é imediatamente e transformando-se no seu oposto."
Quer dizer: dialética não se inventa, dialética se descobre, e os conceitos e articulações elaboradas pelo pensamento não são, ou pelo menos não deveriam ser, criações fechadas sobre si mesmas, mas mediações capazes de facultar ao pensamento a possibilidade de aprofundar-se na compreensão do real efetivo, captando seus nexos ontológicos fundamentais. É primacial pois saber articular a função mediadora do conceito e a realidade que ele faz presente ao espírito: distinguir entre meios e fins; entre aquilo que se cria, sua função e aquilo que não se cria, mas cuja percepção apenas se dá mediante as nossas criações, desde que adequadas àquilo para que foram criadas. Deleuze e Nietzsche erram nisso: o conceito não é o fim da atividade filosófica, ele é o meio pelo qual ela se exerce. O filósofo inventa conceitos? Sim. Mas para quê? Com que finalidade? Pois com a invenção do conceito ele não inventa a realidade, ela permanece ali existindo antes e depois dele, independentemente dele. A realidade em si mesma é alheia à atividade do filósofo, ela não se importa com a filosofia.


Plínio Fernandes Toledo