domingo, 14 de abril de 2013

Educação e Adestramento


Aristóteles, embora não nos tenha deixado nenhuma obra diretamente relacionada à educação, legou-nos instrumentos conceituais preciosos para entendermos a dinâmica da realização e, por conseguinte o processo educativo. Ao trazer as formas platônicas do lugar celeste onde se encontravam para dentro do mundo sensível, o filósofo  macedônio tornou possível a explicação não só da estrutura das coisas particulares como também o processo formativo dessas mesmas coisas. Saber o que uma coisa é significou, a partir de então, expor o projeto específico que cada uma deve realizar.  Em outras palavras, Aristóteles fez-nos compreender a realização em função de um processo teleonômico no qual cada coisa leva ao pleno cumprimento o seu fim próprio, sua forma definitória. Dessa maneira, foi possível, utilizando os instrumentos conceituais aristotélicos, distinguir a educação do adestramento, compreendendo que aquela não pode ser confundida jamais com um processo de aprendizagem no qual não se verifique um amadurecimento progressivo de possibilidades intrínsecas ao indivíduo.
Assim, acreditamos  que o ser humano não pode ser tratado como o cão de Pavlov, e isso porque há algo que os distingue e faz com que cada um deles seja digno de um tratamento em conformidade com aquilo que eles mesmos são. Há, evidentemente, uma grande diferença entre a adaptação do animal a estímulos associados, como o urso de circo que ao ouvir a música agita-se porque esta lhe faz presente a sensação do eletrochoque, e o indivíduo que cresce em compreensão por meio da vontade consciente e da razão. Neste sentido, seria preciso, antes de tudo, que os educadores se ocupassem em distinguir entre educação e adestramento, determinando o significado preciso dos termos e o papel que assumem na prática pedagógica. E aqui não devíamos nos preocupar em definir conceitos, nem tampouco estipular regras, mas propor uma avaliação dos mesmos em função da prática efetiva, tendo em vista os resultados relativamente à ação caso adotássemos um ou outro conceito como diretriz para a educação; definir os campos de aplicação dos modelos teóricos em concordância com a realidade daqueles aos quais esses modelos se aplicam. 
Em que sentido podemos afirmar que o adestramento não é adequado como método de formação para o homem assim como a educação não pode trazer nenhum beneficio ao animal, e, acima de tudo, estipular um critério preciso segundo o qual possamos avaliar a prática inconsistente de nossos educadores, que os leva confundir educação com adestramento, preconceito corrente do mesmo tipo daquele que confunde erudição com cultura. Há um o perigo evidente em se aplicar métodos adequados ao adestramento animal à prática educativa. O erro todo consistiria em adestrar pensando em educar, e este erro deriva de uma má compreensão, ou de uma total incompreensão, da natureza daquele que se pretende educar.
Pensamos no adestramento como uma prática que visa à adequação do comportamento do indivíduo a determinações exteriores a ele, a partir de procedimentos metodológicos extrínsecos à sua natureza. Ao contrário, a educação só faz sentido para nós se ela fornecer ao indivíduo os meios pelos quais ele possa chegar a mais ampla realização de sua natureza; se ela for como o terreno fértil que possibilita à flor o pleno desabrochar de sua beleza. Entre educação e adestramento há, portanto, uma diferença substancial: uma serve apenas ao condicionamento de organismos animais dotados de um círculo funcional restrito ao binômio estímulo/resposta, enquanto a outra liga-se estruturalmente a um tipo de ser que não vive num universo puramente físico, cujo círculo funcional não foi apenas quantitativamente alargado, mas sofreu também uma mudança qualitativa. No ser humano, o desenvolvimento ganha uma significação e alcance de que carecem o resto dos seres vivos, pois somente nele é possível a efetivação de um processo auto-formativo em que se verifica a possibilidade de um crescimento consciente rumo a determinações qualitativamente superiores: a educação como realização de uma liberdade própria do ser automediado.
Por outro lado, no adestramento há sempre uma vontade que tenta submeter outra vontade e a força a curvar-se ante suas próprias exigências. Há aqui o exercício de um condicionamento que exige do indivíduo adequação total às regras e critérios exteriores à sua natureza. Mediante o adestramento, este é levado a transformar-se, artificialmente, naquilo que ele não é - e, na medida em que nada pode tornar-se aquilo que não é - o resultado é sempre uma deformação desastrosa que nada tem a ver com a verdadeira educação. Na realidade, tal procedimento revela uma total falta de compromisso para com o conhecimento da realidade efetiva daquele a quem se educa, pressuposto da educação correta. Lembremos aqui uma passagem significativa de Platão em que o filosofo grego nos alerta para a necessidade de um pleno conhecimento de nossa própria natureza para que, assim, possamos nos transformar em total conformidade com ela: "Jamais poderemos saber qual é a arte de tornar melhores a nós mesmos (vale dizer: a educação), se ignorarmos o que nós mesmos somos." Em outra passagem do mesmo diálogo Platão nos fornece o sentido da ligação entre autoconhecimento e o cuidado de si próprios à educação, quando sustenta: "Se nos conhecermos, saberemos talvez também qual é o cuidado que devemos ter com nós mesmos; se não nos conhecermos, jamais o saberemos."
Ora, um projeto educacional que não parte de uma avaliação correta da realidade ontológica do homem só pode trazer como resultado para o mesmo a impotência, a frustração, a dor e a infelicidade. Exatamente tudo aquilo que a educação não poderia jamais querer produzir, uma vez que, desta forma, ela entraria em contradição com os fins que ela mesma se determina. E a diferença entre educação e adestramento está justamente ligada à diferença entre liberdade humana e natureza animal.
Por outro lado, a educação verdadeira, ao contrário do adestramento, deve fazer curvar os métodos às necessidades interiores do homem; aquilo que a sua própria natureza possui em estado de potência, fazendo com que ela se realize em ato. Tornar-se aquilo que se é, conforme reza a sentença de Píndaro, mas não sem antes saber exatamente aquilo que se é. Neste sentido, a educação não deve forçar o indivíduo a acomodar-se no leito de Procusto das metodologias previamente estipuladas, mas, antes, avaliar o seu campo de possibilidades autênticas a fim de que, mediante a elaboração de procedimentos metodológicos adequados, possibilite a realização mais plena de suas virtualidades. A potência e o ato, a possibilidade e a efetividade são categorias com as quais deve necessariamente trabalhar a educação correta. Só assim poderíamos trazer ao indivíduo que se educa a oportunidade de crescer em capacidade, em poder, em realização e em felicidade, procedendo, como queria Spinoza, a desvalorização de todas as paixões tristes em proveito da alegria, transformando a nossa atual "potência de padecer" em "potência de agir".
Sendo assim, o educador deve-se preocupar em não exercer um ofício tirânico sobre o educando, forçando-o a acomodar-se aos seus próprios valores, mas, antes, aprender do indivíduo aquilo que ele é para só então ajudá-lo a desenvolver-se em conformidade com sua própria essência. Neste sentido, o verdadeiro educador é aquele capaz de oferecer ao indivíduo meios adequados para que ele possa realizar o projeto que o especifica. Ou seja, aquele que é capaz de adequar as formalidades do método à realidade do objeto.
A educação é um fato essencialmente humano e como tal deve ser pensada, ou seja, ela deve partir do homem como pressuposto. Como devemos aprender de Aristóteles, o que importa, em primeira instância, ao educador, é orientar-se de acordo com o fim, entendido, no entanto, como determinação interior à própria natureza da coisa. 
Deste modo, é preciso que, antes de mais nada, defina-se o homem que se quer educar, ou seja, que se procure identificar aquilo que é especifico à vida humana sendo, portanto, o que se deve desenvolver no homem como consequência natural do exercício da atividade que o especifica. É preciso, antes de tudo, saber articular os meios com relação aos fins próprios a cada ser. 
Em outras palavras, deve-se pensar a educação como o meio pelo qual é colocada a possibilidade do pleno desenvolvimento das potencialidades humanas e, como tal, é preciso que ela comporte dois momentos fundamentais: em primeiro lugar, a identificação daquilo que caracteriza a forma humana, portanto o que no homem é preciso desenvolver de maneira mais plena; em segundo lugar, a reflexão sobre os meios pelos quais conseguir de maneira adequada tal desenvolvimento. Neste sentido, o problema educacional veicula-se estreitamente à questão ética que propõe aos homens meios para atingir a felicidade. Mas, uma vez que não há felicidade sem realização, não há ética sem educação. O problema é dos mais importantes e dele depende como se vê, a consecução para o homem das mais elevadas finalidades, condizentes com as suas mais altas aspirações.