sexta-feira, 27 de setembro de 2013

SOBRE A FILOSOFIA II

O mundo tem visto alguns filósofos maravilhosos. Desafortunadamente, as pessoas não têm podido entender as palavras que esses grandes filósofos escreveram. Muitos dos seus escritos parecem ter sido feitos para estudiosos que já sabem o que está sendo discutido ali. O resto de nós, provavelmente, teria de passar meses ou anos tentando imaginar o que eles estariam dizendo e por quê.
Se pudéssemos começar do princípio, com uma introdução sensível e compreensível, seríamos todos capazes de entender algo do que os filósofos estão falando. Isto seria de imensa valia para nós, não só porque nos levaria a compreender alguns pensamentos profundos que poderíamos distribuir nas festas, impressionando os amigos, mas porque é bom, pelo menos uma vez na vida, ficarmos expostos a algo um pouco mais provocante que os programas de TV. Algo no qual todos nós estejamos envolvidos e que fale a nós todos.
Por exemplo, uma pessoa que lê, e entende, os pensamentos de um filósofo sobre a justiça, prosseguirá com um sentimento de ter-se tornado uma pessoa melhor - com um sentimento aumentado de que ele ou ela deve crer na justiça e na verdade, e que é importante para todos falar de tais coisas. Esta mensagem não é algo que você tire necessariamente do jornal diário, e ela também não aparece muitas vezes no seu ambiente de trabalho, e quando as pessoas dogmáticas falam dela, elas falam de uma forma muito restritiva, evitando tratar da justiça e da verdade como coisas que são importantes e igualmente válidas para todas as pessoas.
A motivação filosófica é um impulso natural no homem? A propósito William James afirma existir em todos nós um curioso fascínio em ouvir falar de temas amplos e de coisas profundas, mesmo que não os compreendamos inteiramente. De qualquer forma sentimos a vibração contagiante do problema, sentimos e gostamos da proximidade da vastidão. Se num recinto público qualquer, por exemplo, começa-se a estabelecer uma controvérsia sobre o livre-arbítrio ou a onisciência divina, ou mesmo sobre o bem e o mal, imediatamente todos no lugar aguçam os seus ouvidos e, se a ocasião permitir, entram imediatamente na discussão. Isto porque os resultados da filosofia concernem a todos nós de maneira extremamente vital, as palavras são de James, e os estranhos argumentos que ela elabora roçam agradavelmente em nosso senso de sutileza ou ingenuidade. “A filosofia é, ao mesmo tempo, a mais sublime e a mais trivial das atividades humanas”.(William James, Pragmatism )
Julgando pelo amontoado relativo de tempo que as pessoas gastam lendo e falando acerca da justiça e da verdade, comparado, por exemplo, com o tempo que gastam discutindo sobre a melhor forma de aplicar e investir dinheiro, ou sobre a decoração da casa, ou sobre o carro importado que querem comprar, devemos ser levados a crer que essas pessoas não acreditam (ou pelo menos não se dão conta) que tais valores básicos são muito importantes. Mas eles são. Se isso é verdade, então aqueles de nós que se importam com tais questões teriam mais razões para tornarem-se ainda mais capazes de pensar e falar dessas coisas.
Há uma curiosa história contada por Platão sobre Tales de Mileto: “Enquanto observava as estrelas, olhando para o alto, Tales caiu em um poço. Presenciando o acontecido, uma espirituosa serva trácia diz-lhe gracejos: ele queria saber o que havia no céu, mas permanecia-lhe oculto o que estava diante dele e a seus pés.” O filósofo no poço nos mostra o pouco caso que o senso comum faz da filosofia. Não sendo capaz de compreender o sentido e importância das indagações filosóficas, o homem comum zomba delas como o cachorro que late para aquilo que não compreende. Porém Platão dá a história uma interpretação mais profunda. “A mesma troça atinge a todos os que vivem na filosofia. De fato, a alguém assim se oculta o que é próximo ou vizinho, não apenas com respeito ao que faz, mas também a se é realmente humano ou não. Se obrigado a falar diante do tribunal, ou em qualquer outro lugar, sobre o que está a seus pés ou diante de seus olhos, o filósofo provoca risos não só de moças trácias, mas de todos os presentes. Por sua inexperiência, cai em poços e na perplexidade; sua espantosa falta de jeito faz com que pareça ingênuo”. (Weischedel. A escada dos fundos da filosofia.) 
Platão foi menosprezado pelo público ateniense quando lhes dirigia um discurso acerca do Bem; Hegel foi desafiado por Krug a deduzir racionalmente a pena que usava para escrever os seus textos. Em todas as épocas as pessoas demonstram não saber do que a filosofia  trata e tentam ridicularizá-la, porém, vem o decisivo: “ Mas o que é o homem e o que, diferentemente dos demais seres, cabe a ele fazer e sofrer -, é isso que o filósofo procura e se esforça para investigar.” Assim a coisa se inverte: quando se trata da essência da justiça, da virtude e de outras coisas de maior valor, são os outros que vacilam e não sabem o que fazer e se tornam ridículos. E então terá chegado a vez do filósofo.
O mundo possui muitas tradições filosóficas e, se o tempo permitisse, deveríamos estudá-las todas. Mas, se pudéssemos estabelecer prioridades, deveríamos começar por aquela tradição que mais impacto causou na cultura ocidental e mais luz trouxe aos nossos problemas. Deveríamos começar com a  Grécia antiga - e, ao longo do estudo, com certas modificações de percurso introduzidas pelas fontes clássicas de Roma e do Cristianismo. Estas tradições filosóficas foram responsáveis pela formação da maior parte do pensamento jurídico, político, social, científico e cultural da Europa e da América.
Assim, talvez pudéssemos saber quem nós somos, cobrando de nós mesmos o que fomos. E assim, conhecendo aquilo que nos consiste, não naufragaríamos no mar tumultuoso de nossas próprias circunstâncias. Conscientes disso estaríamos aptos a nos transformar em pessoas melhores, plenamente desenvolvidas e livres, capazes de gozar da verdadeira felicidade que só a total realização de nossa própria natureza nos capacita. Amando e conhecendo o que há de melhor em nós mesmos não estaríamos a mercê dos prazeres fugazes e dos gozos passageiros, mas seríamos como o bom timoneiro que conduz a nave a bom porto e ancora na plenitude do existir.
Não há a menor dúvida sobre quando a filosofia grega atinge o estatuto de um sistema universal de pensamento. Como disse Alfred North  Whitehead: “A mais segura caracterização geral da tradição filosófica européia é que ela consiste numa série de notas de pé de página às obras de Platão.”
Começar a filosofar e começar por Platão. Ora, mas Platão não é um pensador muito distante de nós, de forma que não tem mais nada a nos dizer hoje? Mas não, Platão continua a nos dizer muito porque em todos os seus textos é de nós que ele fala, “do homem preso na tripla problemática característica do seu destino: do indivíduo que procura a satisfação, do cidadão que quer a justiça, do espírito que reclama o saber; e a sua fala ressoa singularmente porque emana de um tempo e de um lugar de origem onde foram tomadas, em circunstâncias excepcionais, decisões que, doravante e por mais invenções que depois fossem feitas, determinaram  a nossa cultura.” [ Chatelêt, Platão ]



A PROPÓSITO DA FILOSOFIA


Qualquer um que reflita por um momento sobre a conjuntura em que vivemos nos dias atuais descobrirá que o nosso mundo é totalmente avesso ao patrimônio filosófico. Vivemos em uma sociedade da imagem que despreza o conteúdo e fixa-se nas aparências generalizantes e nas formas inertes que não se movem por si, mas empurradas pelos interesses materiais daqueles que nos querem escravizar.  O mundo do espetáculo é também aquele das sombras e dos simulacros em que o que vale sempre é o que menos se pode dotar de valor.
Fragmentação, fuga para o irracional, isolamento e alienação são as realidades que nos governam enquanto não nos tornamos capazes de nos governar, de romper com as exterioridades e aparências fugidias e nos apossarmos da verdade que está em nós mesmos, em nossa capacidade de pensar e agir de forma consciente e plena. Quem aposta na consciência dá um passo rumo à filosofia e este passo significa um salto na direção de sua própria emancipação.
 A filosofia constitui antes de tudo uma redescoberta do mundo que começa como um pensar por conta própria. Ernst Bloch disse que quem pensa por si mesmo não aceita nada como fixo nem definitivo, nem os fatos amansados nem as generalidades inertes, menos ainda os chavões cheios de odor cadavérico de nossa caverna pós-moderna. "Mas aquele que aprende de verdade deixa-se afetar ativamente pela matéria, considera-se capaz de viver sobre a marcha e romper as cascas das coisas: encontra-se como a sentinela nos postos fronteiriços da vanguarda. Quem ao aprender comporte-se passivamente limitando a assentir com a cabeça, logo cairá no sono. Ao contrário, quem esteja na coisa e marche com ela, por seus caminhos não trilhados, alcança a maioridade e se encontra enfim em condição de distinguir entre o amigo e o inimigo e de saber onde a verdade abre caminho.”[1]
É ainda Bloch quem afirma, “O trote do burro levado pelas rédeas é cômodo, sem dúvida, mas os conceitos enérgicos são os que correspondem à juventude e à virilidade.”[2]
Nós que nos perdemos nas contradições do relativismo, que escolhemos a trilha mais fácil e nos desorientamos na selva dos estímulos que apelam aos nossos desejos mesquinhos sem nos oferecer o mapa que nos conduza para fora do labirinto, devemos arriscar algo que a maioria recusa-se a experimentar. Tentar encontrar a saída por nós mesmos, dispondo de nossos próprios recursos. Para isso necessitamos nos apoiar em uma tradição de pensadores críticos que diagnosticaram a nossa miséria, sem, no entanto, terem conseguido eles mesmos superá-la. Devemos apelar para a tradição dos fracassados. Fazer um pouco de filosofia marginal. 
Ser é fazer-se e o humano é aquele que se faz ao se construir constantemente como tal. No caminho do conhecimento, da liberdade e da realização pessoal a filosofia crítica e os filósofos radicais, aqueles que tomam as coisas pela raiz - e, segundo Marx, a raiz do homem é o próprio homem - nos fornecerão a bússola que norteará nosso caminhar. Não caminharão por nós, mas nos forçarão a fazê-lo por nós mesmos. Só assim podem nos ajudar, porque somente desta forma querem nos orientar: servindo de exemplo e guia  no trajeto de nossa autoconstrução.



[1] BLOCH. Subjekt-Objekt. Erläuterungen zu Hegel. Suhrkamp Verlag, Frankfurt. 1962. Trad. Plinio Toledo.
[2] IDEM

quinta-feira, 12 de setembro de 2013

O Logos de Heráclito



“Este Logos, os homens, antes ou depois de o haverem ouvido, jamais o compreendem. Ainda que tudo aconteça conforme este Logos, parecem não ter experiência experimentando-se em tais palavras e obras, como eu as exponho, distinguindo e explicando a natureza de cada coisa. Os outros homens  ignoram o que fazem em estado de vigília, assim como esquecem o que fazem durante o sono.” Heráclito
  
O fragmento 1 era evidentemente o proêmio da obra de Heráclito e nele, como era costume nos tratados da época, começa-se por falar da própria obra, denominada, também, habitualmente Logos, ou seja, algo assim como coisa que se diz, relato, discurso. O problema é que Logos é para Heráclito muito mais que isso; é um conceito crucial de sua própria interpretação do mundo. Além de ser o discurso de Heráclito que, como tal, pode ser ouvido por seus ouvintes- e, ao que parece, não compreendido- é a linguagem mesma, pelo que é amiúde qualificada por seu autor de comum. Porém há mais: Heráclito herda  outra antiga acepção do termo que em grego valia como proporção e, na boca do filósofo, chega a constituir-se em um tipo de princípio, padrão ou norma  universal , uma espécie de estrutura de acordo com a qual ( e segundo cujas proporções ) acontecem todas as coisas no mundo. Um padrão de natureza dialética.
Logos é, portanto, uma explicação lingüística e, ao mesmo tempo, uma entidade real, dentro da unidade própria do pensamento arcaico, entre o homem e a coisa. Daí a tradução Razão, que em português reflete palidamente o logos original, porém ainda conserva em nossa língua essa tripla conotação lingüística, aritmética e lógica. ( Garcia Calvo assinala que em espanhol o termo razão guarda a mesma tripla conotação )

Marcovich agrupa dois fragmentos ( 23-24 ) sobre a base de que se trata de inferências acerca do caráter comum, isto é, da validez universal da razão, que interpreta como estendida a quatro planos:
a) o lógico- a razão é operante em todas as coisas ( fr. 23, cf. o 1 );

b) o ontológico- segundo o qual a razão é um  substrato unificador sob a pluralidade de manifestações das coisas, quer dizer, constitui a unidade do mundo;

c) o gnosiológico- segundo o qual a compreensão da razão é condição imprescindível para a correta  compreensão do mundo;


d) o ético- a razão é também um guia para a conduta diária.

Uma palavra sobre a Physis

Em sentido geral, o termo grego physis designa, no contexto da filosofia pré-socrática, a Natureza, entendida não só como a totalidade do mundo físico imediatamente apreensível aos sentidos, mas, especificamente, como o fundo primordial de onde dimanam todos os componentes do cosmos, sobre cuja base estes componentes se sustentam e ao qual retornam após terem cumprido o ciclo de suas existências. 
Além de significar a Natureza tal como é comumente entendida, a palavra physis abarca também, segundo o que assevera Werner Jaeger, “o fundo originário das coisas, aquilo a partir do qual se desenvolvem e pelo qual se renova constantemente o seu desenvolvimento; em outras palavras, a realidade subjacente às coisas da nossa experiência.”[1] (grifos meus)  John Burnet, por sua vez, afirma que “na língua filosófica grega, Physis designa sempre o que é primário, fundamental e persistente em oposição ao que é secundário, derivado e transitório.”[2] (grifos meus)
Como é possível depreender do significado filosófico do termo physis, a filosofia nasce e começa a se desenvolver na Grécia a partir de um novo posicionamento do homem diante do mundo. Conforme observou Garcia Morente,
O primeiro esforço filosófico do homem foi feito pelos gregos e começou sendo um esforço para discernir entre aquilo que tem uma existência meramente aparente e aquilo que tem uma existência real, uma existência em si, uma existência primordial, irredutível a outra. (...) Estes filósofos gregos procuram qual é ou quais são as coisas que têm uma existência em si. Eles chamavam a isto o ‘princípio’, nos dois sentidos da palavra: como começo e como fundamento de todas as coisas.[3]  

A physis é este “princípio”, este começo e fundamento a que se refere Garcia Morente. Desta forma, podemos afirmar que se a consciência mítica do homem primitivo operava mediante um embaralhamento espontâneo da realidade cotidiana com a sobre-realidade sacramental, embaralhamento este resultante de uma inserção mais ou menos completa da existência humana na paisagem natural, a consciência filosófica, em sua configuração primeira, já executa a dissociação, a distinção entre dois planos distintos de realidade: ela começa desde então por distinguir entre uma existência meramente contingente daquilo que é necessário e fundamental, entre as coisas que aparecem e o princípio ou fundamento que lhes confere existência e significado.
No contexto do teísmo dos pré-socráticos, physis significa a substância física primordial, o princípio ou arché, da qual eram feitas as coisas e o processo de crescimento destas mesmas coisas. Esta substância era viva, daí divina e, logo, imortal e indestrutível.
Assim, a physis dos primeiros filósofos tinha movimento e vida, mas com a remoção enfática, feita por Parmênides, da Kinésis  do reino do ser, a noção de physis foi, de fato, destruída, passando a iniciação do movimento para agentes exteriores, v.g. o “Amor” e o “Ódio” de Empédocles (cf. Diels, frg. 318 A 28) e o Nous de Anaxágoras.
É neste sentido que se pode afirmar dos milesianos que eles representam o exemplo mais característico dos fisiólogos, daqueles que orientaram a sua pesquisa no sentido de determinar o princípio material imanente ao cosmos.




[1] Jaeger, Werner, La Teologia de los primeros Filosofos griegos, México, F.C.E., 1952, pág. 26.
[2] Burnet, John, L’aurore de la philosophie grecque, Paris, Payot, 1952, pág. 26.
[3] Morente, M.G., Lições preliminares de filosofia, São Paulo, Mestre Jou, pp. 68/69.